Hoje em dia, para tudo há dois times: os “quarenteners” e os “cloroquiners”; ou os conservadores e os progressistas; os “vegan” e os carnívoros. Seja qual for o tema, há sempre dois times, que defendem pontos de vistas antagônicos. Com uma sociedade tão dividida, o comportamento de consumo também toma partido. E, nesse cenário, como é planejar uma campanha de marketing? As marcas levam em conta essa polarização?
“A marca precisa se posicionar. Agradar a todo mundo é incoerente”, diz Stella Pirani, diretora de Planejamento da Wunderman Thompson Brasil (WT). “A marca também é um agente transformador do mundo. Ela ajuda a catalisar as mudanças. Se ela não se posiciona legitimamente, incluindo aí o quadro de funcionários, ela vira refém dos acontecimentos, conforme aconteceu com o Carrefour”, explica a publicitária, citando o caso da rede de supermercados, na qual um cliente negro foi morto por seguranças.
Ela diz que ter um posicionamento claro de marca é o primeiro passo para definir a linha de qualquer campanha. É o que aconteceu com a Avon, de cosméticos, que recentemente fez uma campanha com mulheres negras e do esporte, como a jogadora de futebol Marta.
“Foi inédito juntar os dois universos, o feminino e o dos esportes. E isso mostra a posição da marca de ser para todas, em todo momento”, diz Stella.
Para Aloísio Pinto, vice-presidente de Planejamento da Isobar, marcas são como pessoas. “As pessoas se aproximam das marcas por afeto. E, nesse processo, tem exclusão e rejeição. Não dá para a marca dançar entre duas posições. Se fizer assim, ela é uma marca esquizofrênica”, diz ele.
Esse processo de posicionamento e de saber que não se pode agradar “gregos e troianos” começa bem antes da definição da campanha: ele se inicia na escolha da agência. Os valores, nesse caso, têm de bater entre as duas partes.
“Uma marca que não leva em conta, como nós levamos, valores como diversidade, naturalmente não se aproxima da Isobar. Não vai nos procurar”, diz Pinto. É aí que a primeira escolha de lado, no processo de se planejar uma campanha, começa.
Mas essa polaridade é ruim? “De jeito nenhum, é um prato cheio para fazer marketing”, diz Rafael Donato, vice-presidente de Criação da agência David São Paulo. “Para cada ‘hater’ que uma campanha gera, aparecem cinco fãs defendendo a marca”, diz ele, que já criou campanhas consideradas polêmicas, principalmente para a rede de fast-food Burger King.
Casal de três
Uma delas mostrava um “trisal”, ou seja, um casal de três: uma garota com dois namorados numa lanchonete da rede. “Quando o tema é muito polêmico, a gente faz testes, entrevista consumidores quem têm esse perfil, para não se apropriar do tema, fazer barulho e pronto. O que a gente quer é mostrar que todo mundo é bem-vindo nos nossos restaurantes”, diz Thais Souza Nicolau, diretora de Comunicação e Inovação do Burger King.
O potencial de gerar polêmica, segundo Donato, é essencial para a campanha. No caso do “trisal”, consumidores com posições consideradas mais conservadoras reclamaram da campanha. Disseram, por exemplo, que a propaganda era abominável. “Então, a gente fez uma versão comportada paródia, dublando os personagens: em vez de casal, eram só amigos. O humor é o melhor jeito para achar o espaço em comum entre públicos tão diferentes”, diz Donato.
Stella, da WT, concorda. A agência, por exemplo, resolveu usar o humor para retratar a própria polaridade que a quarentena gerou. Para a cerveja Amstel, a WT criou filmes que retratam as “espécies da quarentena”, ou seja, os diferentes comportamentos que o isolamento social criou: o fanático por “delivery”, os que fazem “lives” toda hora, os que fazem festa sozinho, entre outros. “Amstel é uma marca plural, então, cabia mostrar isso no filme: as várias tribos”, diz Stella.
Natal
Neste fim de ano, as campanhas de Natal que já estão no ar também mostram um pouco dessa polaridade. Algumas ignoram totalmente a existência da pandemia e mostram, por exemplo, aglomerações, churrascos em casa de amigos, grandes grupos reunidos para celebrar. Outras, por outro lado, resolveram assumir a contradição desses tempos de contágio pelo vírus.
“Na hora de traçar o planejamento de uma campanha, a gente trabalha com duas réguas: vamos por um lado, se a pandemia arrefecer ou vamos por outro, se houver uma segunda onda, um segundo pico de contágios”, conta o vice-presidente da Isobar.
Uma das campanhas que resolveu assumir a pandemia é a da Lacta, feita pela David. Nela, o Papai Noel, que por sua idade pertence ao chamado grupo de risco, fica em casa e é substituído pelo Coelho da Páscoa na distribuição dos presentes.
“Eu entendo que uma parcela da população tem uma necessidade de ter normalidade. Por isso, muitas campanhas escolhem essa normalidade. Mas a gente entende que as marcas não vivem num vácuo. Por isso, elas precisam participar do momento em que estamos vivendo”, diz Donato.