De Berlim a Moscou para encontrar Mikhail Gorbachev, morto aos 91 anos, foi uma viagem pelas emoções do mundo da bipolaridade, da Guerra Fria, do confronto entre as superpotências – que parecia ter ficado no passado. Eu acabara de assumir o posto de correspondente do Estadão em Berlim, depois de cobrir a queda do Muro, um evento indissociável da figura de Gorbachev.
Conversar com Gorbachev era uma oportunidade única, que dependia de o gravador funcionar. Quando, ao final da primeira longa resposta, olho para o pequeno aparelho na mesa, um arrepio de horror. Não estava gravando. “Não se preocupe”, disse Gorbachev, com ar paternal, assim que parei a entrevista e lhe avisei do problema técnico. “Eu repito tudo igualzinho.”
Tirando Nikita Kruchev (um exemplo que Gorbachev evitava), líderes soviéticos não eram conhecidos pelo bom humor. Isso só mudaria com o sucessor de Gorbachev, Boris Yeltsin – mas o humor, nesse caso, dependia muito de quanto ele tinha bebido.
Gorbachev sempre esbanjou uma inteligência prática e uma visão abrangente que o levaram à guilhotina política. Pouco depois de perder o poder, já era abominado pelos “siloviki” (os homens daquele obscuro agente da KGB que viria a ser o presidente Vladimir Putin) como o coveiro da pior tragédia geopolítica do século.
Gorbachev parecia sinalizar a compreensão de que tentara reformar um sistema irreformável. Seu empenho era salvar o que pudesse do monopólio do poder do Partido Comunista, do “near abroad”, como a Rússia ainda hoje entende o papel dos países sob sua influência, ao mesmo tempo que reconhecia o atraso econômico e tecnológico que foram fatores para a implosão do império soviético.
Ele nunca entendeu o mundo sob a perspectiva de uma hipotética governança global dividida entre potências iguais. Sua visão era distante do hiper-realismo de Henry Kissinger, mas admitia que as potências se relacionam sempre sob o temor pela própria segurança. Elas não têm amigos, só interesses.
O mundo do qual Gorbachev se despediu é mais parecido com aquele que ele tentou reformar. Um mundo da competição entre grandes blocos, no qual ele tinha ajudado a abrir uma pequena fresta, uma janela para um outro possível – mas que já se fechou. (William Waack)