Silent Hill 2 e a Jornada do Herói

Bernardo Franciulli Martins Fonte

Silent Hill 2 foi lançado em 2001, inicialmente para Playstation 2 e subsequentemente recebeu uma versão no Xbox original, uma para computador e mais tarde remasterizações para Playstation 3 e Xbox 360.

A sequencia para o criticamente aclamado Silent Hill original (https://www.metacritic.com/game/playstation/silent-hill) estabeleceu a serie como uma antologia envolvendo a cidade amaldiçoada que dá titulo a franquia, tendo um enredo e temática que não se relacionam com o primeiro jogo e possuí uma menção ao quarto, que apenas seria lançado em 2004.
Ao abordar o conflito de James Sunderland ao receber uma carta de sua falecida esposa, chamando-o para que eles se encontrem no lugar especial que os dois dividiram em suas visitas à Silent Hill, antes um destino turístico popular, o jogo consegue abordar conceitos novos e entregar uma narrativa um pouco mais pessoal, abandonado alguns dos temas centrais do primeiro jogo.
A viagem de James pelo inferno, literal e metafórico, que é a cidade de Silent Hill pode ser facilmente comparada em alguns pontos com o livro “O Herói de Mil Faces”, escrito por Joseph Campbell. Porém o jogo apresenta o diferencial de que o protagonista não é necessariamente uma pessoa boa, tendo momentos moralmente ambíguos e uma revelação perturbadora sobre os eventos em que ele se encontra na cidade.
Uma cena em particular evidencia bem a dualidade do personagem, curiosamente é a cena em que somos introduzidos a ele (https://youtu.be/nH-cbmXymdw?t=253).

Capítulo 1: A Partida.

O chamado da jornada, o primeiro passo do herói segundo Joseph Campbell, aparece no jogo na forma da carta de Mary, a esposa de James que faleceu três anos antes do acontecimento dos jogos, servindo como o catalizador para o início da historia. A “Fatídica Região dos Tesouros e Perigos”, como dito no livro, pode ser interpretada como a própria cidade macabra.
A Recusa do Chamado, em primeiro momento pode ser interpretada como a relutância de James e seu ceticismo com relação à autenticidade da carta, mas ao mesmo tempo, é possível que seja representada pelo bloqueio mental do personagem com relação ao seu ato. Negligenciando a ideia de que ele mesmo teria matado a esposa e se conformando com a doença ter sido a causa da morte, James pode ter iniciado sua jornada a partir desse momento.
Em sua passagem pela cidade, ele recebe auxilio de um rádio aparentemente quebrado como forma de alerta para a presença dos monstros e perigos na cidade. As mensagens escritas nas diversas paredes encontradas no jogo também ajudam o protagonista de certa forma, apontando-o na direção em que ele deveria ir. Como a autoria dessas mensagens nunca é especificada é possível atribuir elas tanto ao sobrenatural quanto à própria arquitetura macabra da cidade.
Ao finalmente conseguir entrar na cidade, James segue uma trilha de sangue até encontrar o primeiro confronto na cidade. O final do caminho o leva para um beco, aonde encontra o primeiro monstro do jogo. Conhecido como Lying Figure, a criatura representa tanto o seu sofrimento, enclausurado em toda essa situação, como Mary em seu leito de morte. A doença não especificada é dita por tê-la deformado, ela própria comenta “estou parecendo um monstro!” em uma das gravações encontradas no Hotel Toluca Lake. Esse monstro significaria o inicio da decadente jornada de James
Já a “baleia” do jogo aparece na forma do monstro Pyramid Head, uma criatura representativa do desejo interno de James ser punido por seu crime, que para ele aparenta ser impagável. O monstro aparece em diversos momentos chaves do jogo como chefe de fase ou como catalizador de algum evento que viria a atrapalhar a missão de James.

Capítulo 2: A Iniciação

O caminho de provas propriamente dito que James deve seguir se encontra na forma das várias áreas exploradas pelo jogador no decorrer do jogo. Cada uma delas entrega uma peça importante do quebra cabeça da história, que chega ao seu climax no Hotel a beira do lago Toluca, o “lugar especial” referido por Mary na carta, que nesse estagio do jogo é apenas um papel branco.
O encontro com a Deusa, assim como o auxilio do sobrenatural, pode ser significado pela existência do rádio de bolso. Uma evidencia importante para essa ideia seria a mensagem inicial recebida por James logo após adquirir o item (https://youtu.be/nH-cbmXymdw?t=1158) poderia ser da própria falecida esposa.
O encontro do protagonista com Maria, a personagem misteriosa que o lembra de seu amor perdido em vários aspectos, pode representar bem literalmente a mulher como traição, visto que aparentemente o maior motivo dela como personagem é estar com James, em mais de um sentido. O fato dela também agir exatamente como Mary e se lembrar de coisas que deixam até mesmo o próprio James confuso acentuam ainda mais seu interesse pela moça, sendo possível inclusive encerar o jogo com um epílogo em que Maria e nosso protagonista escapando juntos da cidade. O detalhe de que esse epilogo mostra a moça com os mesmos sintomas da doença que “tirou” a vida de Mary deixam a noção cíclica da história extremamente evidente.
Tanto o confronto com o pai, quanto a apótese e a benção última acontecem de forma quase simultânea e similar na ultima parte do jogo, precedendo o último chefe. Nesse momento, o possível final que o jogador irá conseguir está praticamente selado, faltando apenas algumas situações especificas para diferencia-los por completo. James assiste a uma fita que revela aquilo que foi sugerido em alguns momentos e outras conversas, ele realmente havia matado a sua esposa.
Isso é a grande revelação que ele tanto buscava, seu confronto e apótese o alcançaram, mesmo com tanto esforço para se livrar deles, para esquecer, nenhuma das tentativas foi o suficiente para suprimir a culpa interna que James tanto sentia. Todos esses sentimentos e essas atitudes acabam por revelar o ultimo obstáculo do jogo, uma versão extremamente hostil e distorcida da falecida esposa.
Para James, derrotar essa criatura grotesca representa seu objetivo, sua redenção, a verdadeira manifestação de sua benção ultima, que revela a reação da Mary de verdade com base nas ações de James.

Capitulo 3: O Retorno

Grande parte dos finais do jogo se encaixa em um dos estágios de conclusão da jornada. Como cada um dos finais apresenta uma perspectiva diferente, mas não altera a cronologia dos eventos diretamente ou as consequências deles, é importante levar em conta que todos se complementam de certa forma, para criar a experiência completa do jogo.
No final considerado por muitos, inclusive pelo diretor do jogo, como canônico, James decide jogar seu carro no lago e acabar com a própria vida. Isso representa que ele encontrou sua redenção apenas nesse ato, se recusando a voltar para a vida usual que ele teve durante esses três anos em que a esposa estava morta.
Em um dos finais que apenas se torna disponível ao encerrar a campanha pelo menos uma vez, James coleta alguns artefatos espalhados pela cidade em uma tentativa de reviver a esposa em uma das ilhas do lago. Esse final representa uma outra forma de arcar com as consequências de seus atos, por meio de uma maneira mística que estava guardada com afinco na cidade.
Outro final já citado anteriormente mostra James e Maria escapando da cidade juntos, implicando que agora os dois dependem um do outro para lidar com todos os eventos que eles presenciaram na cidade, utilizando desse conhecimento infeliz para tentar reconstruir a vida de ambos, mas em um momento quase interpretado como justiça cármica, a nova companheira de James começa a apresentar os sintomas que afligiram Mary.
O final mais otimista do jogo pode ser uma junção de dois estágios dessa conclusão, a liberdade para viver e o limiar dos dois mundos. Ao escapar da cidade com Laura, uma menina que foi amiga da falecida esposa no hospital no qual estava internada, James realiza um sonho para a esposa e consegue dar continuidade à sua história na forma de sua única companheira no momento difícil em que passou, atenuando as ações do protagonista ao ponto em que ele se sente livre o suficiente para iniciar uma nova etapa em sua vida.

Conclusão

Silent Hill 2 é um ótimo argumento para mostrar que o estudo e teoria de Campbell podem ser aplicados em diversos tipos de narrativas diferentes, mesmo aqueles não particularmente considerados pelo autor ao escrever sua tese.
O jogo é uma jornada angustiante e sombria pela psique de um personagem consumado por seus atos obscuros e um estudo sobre a moralidade de um ato duvidoso, podendo causar uma discussão produtiva sobre a índole do protagonista desde o momento em que sua jornada foi selada e o declínio até a cidade, uma vez pacata, de Silent Hill se iniciou. Aproveitando muito dos pensamentos e desejos do personagem, criamos uma conexão forte com ele, fazendo com que a revelação e os desafios finais de James sejam mais próximos do jogador.
O jogo também é um testamento sobre o poder narrativo de uma história contada pelo meio do videogame, traçando um perfil do jogador sem que ele ativamente saiba que está sendo feito e por meio do agenciamento apenas proporcionado pela mídia, consegue entregar um final e uma interpretação única da história para cada pessoa diferente que a jogue.

Comentários estão desabilitados para essa publicação