Quais as chances reais do Golfo Pérsico tornar-se superpotência de IA

As duas monarquias no Golfo Pérsico querem Saftec Digital aproveitar a riqueza em fontes de energia para se tornarem grandes centros de infraestrutura de inteligência artificial (IA), que exigem altas quantidades de eletricidade, na aposta de que a tecnologia as ajudará a dinamizar quase tudo em suas economias, desde os serviços públicos até os esforços de diversificação para além do petróleo.

Acordos anunciados durante a visita do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, à região em maio, colocaram sob os holofotes as aspirações da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos de se tornarem superpotências na IA. Entre esses acordos, está a parceria da gigante dos chips Nvidia com a Humain, uma empresa voltada à IA recém-criada e financiada pelo Estado saudita, que tem planos ambiciosos para lançar um fundo de capital de risco de US$ 10 bilhões e conseguir investimentos de empresas de tecnologia americanas.

Por sua vez, Abu Dhabi anunciou a construção de um gigantesco conjunto interconectado de bancos de dados para a OpenAI como parte do projeto da empresa com outras firmas americanas chamado Stargate. O país, que gerencia US$ 1,7 trilhão em fundos soberanos, está investindo bilhões por meio de um fundo de IA, o MGX, enquanto sua Universidade de Inteligência Artificial Mohamed bin Zayed (MBZUAI, na sigla em inglês) está abrindo uma unidade no Vale do Silício.

Os países do Golfo Pérsico “têm capital, energia, vontade política”, disse Sam Winter-Levy, pesquisador do centro de estudos Carnegie Endowment for International Peace. “A única coisa que esses países não tinham eram chips e talentos. Agora [após a visita de Trump], eles podem vir a ter esses chips.”

As grandes ambições da região no mundo da IA ainda podem ter obstáculos pela frente, alertam especialistas. Ambos os países carecem da força de trabalho qualificada que existe no Vale do Silício ou em Xangai, e sua produção em termos de pesquisa ainda é menor que a de outras nações.

Grupos de defesa dos direitos humanos levantaram preocupações éticas quanto ao uso da capacidade de vigilância digital por monarquias autocráticas, enquanto especialistas dos EUA alertaram para o risco de vazamentos de tecnologias americanas para a China.

Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos estão investindo alto em IA, na crença de que a tecnologia em rápida evolução pode ajudá-los a impulsionar a diversificação econômica e, assim, passar a depender menos das voláteis receitas dos combustíveis fósseis.

Os dois países também querem abrigar os enormes bancos de dados necessários para treinar e rodar os poderosos modelos de IA. Nos próximos cinco anos, a Humain planeja construir “fábricas de IA” alimentadas por várias centenas de milhares de chips Nvidia. A fabricante de chips americana AMD prometeu fornecer chips e softwares para bancos de dados “estendendo-se do Reino da Arábia Saudita aos Estados Unidos”, um projeto de US$ 10 bilhões.Embora os administradores de centros de dados, que emitem muito calor, costumem escolher regiões mais frias para se instalarem, os países do Golfo Pérsico argumentam que a grande disponibilidade de terra e a energia barata mais do que contrabalançam as altas temperaturas do verão.

Embora o Golfo Pérsico pretenda oferecer o uso dessas caras instalações a países vizinhos na África e na Ásia que tenham dificuldades para financiar as suas próprias, a maior parte dos negócios provavelmente virá de empresas americanas como a OpenAI, que anunciou a expansão de seu projeto Stargate de US$ 500 bilhões nos Emirados Árabes Unidos.

Apesar de todas as ambições, o Golfo Pérsico não tem nenhuma empresa inovadora construindo modelos de IA de ponta com grandes bases de usuários, como a OpenAI, a chinesa DeepSeek ou a francesa Mistral, além de carecer de grandes números de talentos em pesquisa de IA, de acordo com dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Em vez disso, as pesquisas de ponta são realizadas por entidades ligadas ao Estado e os avanços ficam a cargo de líderes ligados à realeza. Os esforços de pesquisa locais incluem a produção modelos de linguagem de grande escala (LLMs) em árabe.

O Conselho de Pesquisa de Tecnologia Avançada de Abu Dhabi, presidido pelo príncipe herdeiro de Abu Dhabi, xeique Khaled, tem 1,3 mil pesquisadores, produziu vários LLMs e trabalha em versões que possam ser usadas por empresas.

O presidente da universidade MBZUAI, Eric Xing, argumenta que os Emirados Árabes Unidos têm níveis mais baixos de produção de pesquisa em razão de sua população pequena, de 10 milhões, e do sistema de ensino superior relativamente nascente. “Nós nos concentramos mais na qualidade do que na quantidade”, disse.

Acadêmicos afiliados à instituição de seis anos já fizeram publicações sobre temas como modelagem de proteínas, mas os principais estudos sobre IA vêm de empresas ocidentais, como a DeepMind, unidade de IA do Google com sede em Londres.

Para atrair os melhores talentos de IA, os países do Golfo Pérsico tentam cortejar empresas e pesquisadores de IA estrangeiros por meio da cobrança de baixos impostos, da concessão de “vistos dourados” de longo prazo e de regulamentações brandas.

Dados da OCDE mostram que, entre 2019 e 2024, o terceiro maior fluxo de migração de pessoas com conhecimento em IA foi para os Luxemburgo e Chipre, outras jurisdições de baixa tributação.

Os países do Golfo Pérsico procuram aliar-se a empresas ocidentais para impulsionar suas aspirações tecnológicas. Na semana passada, a G42, uma empresa de IA dos Emirados Árabes Unidos, anunciou uma parceria com a Mistral para desenvolver plataformas e infraestrutura de IA. A G42 também tem uma com a fabricante americana de chips Cerebras, que opera seus supercomputadores. Em 2024, teve o apoio da Microsoft, que investiu US$ 1,5 bilhão em uma participação minoritária.

A Microsoft “está nos fornecendo engenheiros”, disse Dimitris Moulavasilis, executivo-chefe (CEO) da M42, subsidiária de saúde da G42, que usa modelos de IA no atendimento a pacientes. “Temos muitos projetos conjuntos nos quais estamos trabalhando.”

“Nenhuma nação pode fazer isso sozinha”, disse Karim Sabbagh, diretor-gerente da empresa de satélites e mapeamento Space42, cujos clientes, em sua maioria, são governos locais e o federal dos Emirados Árabes Unidos. “Em última análise, precisa ser uma coalizão de participantes com a mesma mentalidade.”

O presidente do conselho de administração da G42 e assessor de segurança nacional dos Emirados Árabes Unidos, xeique Tahnoon bin Zayed al-Nahyan, tem encontrado dificuldades para cultivar uma aliança com os EUA e prometido que, na corrida da IA, o país já escolheu Washington, em vez de Pequim. A Space42, parte do G42, e a Humain, da Arábia Saudita, também dizem que não treinariam suas IAs em modelos chineses.

Ainda assim, muitos no establishment de segurança dos EUA se perguntam se os países do Golfo Pérsico, na pressa para se tornarem relevantes em IA, permanecerão fiéis. “A preocupação será que, em sua ambição de serem competitivos, [os países do Golfo Pérsico] tomem um atalho e usem muita mão de obra chinesa ou até mesmo empresas chinesas”, disse Jimmy Goodrich, assessor sênior de análises na área de tecnologia da RAND Corporation. “Isso torna maior a fenda em termos de riscos de segurança.” Empresas chinesas poderiam contornar as restrições a tecnologias americanas consideradas críticas treinando seus modelos no Golfo Pérsico, disse.

A região tem sido restringida por controles à exportação de chips produzidos nos EUA, aplicados justamente pelos receios de vazamentos para a China. O governo Trump abrandou-os para garantir a preferência pelos EUA, mas os democratas criticaram os acordos de IA feitos durante a visita de Trump ao Golfo Pérsico. Dizem não estar claro como os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita fariam para impedir que entidades chinesas tenham acesso aos chips.

Mesmo que o Golfo Pérsico possa importar um volume maior de chips, especialistas ainda preveem controles rigorosos. Isso “virá com estritas obrigações”, disse o advogado Haykel Hajjaji, da firma de advocacia Covington que faz parte da Força-Tarefa de IA do Conselho de Negócios EUA-Emirados Árabes Unidos. Isso pode incluir “mecanismos aprimorados para evitar o desvio para jurisdições ou entidades sancionadas”, acrescentou.

Além de construir a infraestrutura de IA para as chamadas empresas “hiperescaladoras” americanas, o Golfo Pérsico precisa de mais empresas locais.

Baghdad Gherras acaba de deixar seu emprego em tempo integral em um escritório de gestão de patrimônio familiar para lançar a startup SemanticPay nos Emirados Árabes Unidos, que construirá infraestrutura para permitir que agentes de IA façam pagamentos on-line.

“Não sou o único”, disse Gherras. “Precisamos começar a construir aplicativos de IA, porque, para esses centros de dados, esse é o único uso viável de computação.” (Tradução de Sabino Ahumada)

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2025/06/03/quais-as-chances-reais-do-golfo-persico-tornar-se-uma-superpotencia-de-ia.ghtml

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