Caso GameStop faz gestor incluir rede social em mapeamento de riscos

O caso GameStop, em que investidores de varejo desafiaram fundos hedge que apostavam na queda das ações, trouxe um novo componente de risco para os gestores de recursos. Mesmo no Brasil, em que há limitações regulatórias para que o cabo de guerra entre comprados e vendidos ganhe as proporções vistas no mercado americano, a avaliação é que o fator rede social não pode ser negligenciado. 

No episódio, que ficou conhecido como a “revolta das sardinhas”, investidores de varejo combinaram no fórum WallStreetBets, da Reddit, comprar os papéis da franquia de aluguel de games, da rede de cinema AMC e outros negócios fragilizados pelas mudanças de hábito do consumidor e pela pandemia. Queriam se opor aos hedge funds estabelecidos, os “tubarões”. 

Com cerca de 8 milhões de pessoas na comunidade “nerd”, o movimento forçou quem tinha posição vendida a recomprar as ações-alvo para limitar suas perdas. Concretizaram assim aquilo que no jargão do mercado se chama “short squeeze”. 

Sistemicamente, todos sofrem com o aumento da volatilidade num dos principais centros financeiros globais. E multimercados e fundos de ações que buscam capturar ganhos de arbitragem de ativos no exterior têm cada vez mais que mapear de onde vêm os movimentos de formação de preços. 

Não basta apenas fazer a tradicional análise de valor justo para as empresas, diz Cassio Bruno, um dos sócios da Moat, gestora que acabou ganhando dinheiro em cima das movimentações lá fora (leia na página C8). 

Bruno afirma que a rede social já transformou a vida de quem faz gestão de recursos. Com perfil fundamentalista, o trabalho de avaliação das companhias prevê a coleta de opiniões de vários agentes a fim de identificar as assimetrias entre preço e valor. “Quando a pessoa física e outros tipos de investidores se organizam, tem uma mudança sim”, diz. “O mais importante é entender a fundo as empresas, o valor, mas nessa construção a gente sempre conversa com outras pessoas, empresas, gestores, ‘sell side’ e consulta alguns fóruns.” 

Nessa história toda de GameStop, um dos capítulos mais interessantes talvez tenha sido o ganho de US$ 700 milhões do hedge fund Senvest Management, conforme noticiou o “Wall Street Journal” na semana passada. A gestora começou a comprar os papéis em setembro, quando estavam a menos de US$ 10 e lucrou com o rali que levou as cotações para a casa dos US$ 400. Outra que se saiu vitoriosa foi a Mudrick Capital, com acréscimo de US$ 200 milhões com papéis da AMC. Na revolução dos sardinhas, teve tubarão que se deu bem, apesar das sequelas pelo mercado. 

O S&P 500 VIX, principal referência de volatilidade da bolsa americana, conhecido como o “índice do medo”, teve a maior alta percentual em três anos no último pregão de janeiro, coisa que não se viu nem no início da pandemia entre fevereiro e março, destaca Luiz Eduardo Portella, sócio e gestor da Novus. O indicador refletiu a desalavancagem feita na marra pela indústria “long short”, os fundos que fazem arbitragem, e podem ficar comprados ou vendidos. Os efeitos colaterais foram na liquidez. 

 “Os fundos foram obrigados a zerar até o que gostavam. O reflexo no Brasil foi que teve ‘gringo’ que vendeu o equivalente a R$ 4 bilhões no Ibovespa em meia hora e destruiu o mercado, num dia que tinha tudo para a bolsa subir”, afirma o gestor. A operação, feita por meio de corretora americana, foi interpretada como forma de dar liquidez a clientes estrangeiros, possivelmente para cobrir posições nos EUA. “Será mais uma coisa que a gente vai ter que monitorar lá fora, se movimentos de ‘short squeeze’ terão impacto na volatilidade. É o tipo de evento que não existia e vamos ter que mapear.” 

O gestor diz esperar algum freio regulatório à alavancagem nos EUA, a exemplo das restrições impostas aos bancos após a quebra do Lehman Brothers, em 2008. “Todo mundo tem o direito de comprar a ação que quiser, a questão é qual a alavancagem que o sistema aguenta.” 

Por aqui, Portella diz que o mercado já é bastante regulado, não só pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou pelas normas da B3, como também pelos alocadores: bancos, gestoras de patrimônio e plataformas de investimentos que distribuem fundos de terceiros e fazem diligência constante. 

No Brasil, as regras impõem um limite de 20% da capitalização de mercado que pode estar “vendida”, enquanto nos EUA essa relação é superior a 100%. 

Num munto repleto de liquidez, transferências diretas de recursos para as famílias e 

juros muito baixos, o embate liderado por investidores de varejo superconectados é mais um fator a compor a avaliação dos gestores de recursos, diz Fabiano Godói, sócio- fundador da Kairós. A gestora dedicou a carta de fevereiro ao tema. “É um evento bem diferente de outros short squeezes, que é um risco geral que todo mundo que opera long short tem que se preocupar. O inusitado foi a disputa entre profissionais – hedge funds, fundos mútuos e fundos de pensão – que sofreram um short squeeze provocado por investidores pessoas físicas que se juntaram numa rede social.” 

No seu multimercado macro, o gestor diz que já fez operações long short, mas que esse não tem sido o foco. “Na matriz de risco é até difícil criar parâmetros para mapear isso, mas é algo que temos que ficar atentos, dedicar esforços para entender como mapear de maneira eficiente para não ser pego no contrapé”, afirma Godói. 

O risco de algo semelhante ocorrer no Brasil – a exemplo da tentativa de investidores de varejo comprarem ações do IRB para ir contra os vendidos -, até existe, mas as condições são diferentes, prossegue o gestor, porque a alavancagem no Brasil não é tão alta. “Mas se teve impacto de grupos em rede social e até nas eleições, por que não teria no mercado? O esquema de grupos resolvendo em determinado momento agir de maneira coletiva se mostrou real e efetivo, não há razão para não acontecer em outros lugares.” 

Um aspecto interessante para além das movimentações das ações, acrescenta, é a briga à moda Robind Hood, entre as “pobres” pessoas físicas e os hedge funds “milionários”. “Serve para entender como o mundo muda rapidamente com a conjunção de estímulos fartos, transferências diretas de dinheiro e o poder das redes sociais. A sensação é que nós deixamos [alguns grupos] para trás e há alguma desforra.” 

O barulho da pessoa física na Reddit consolida o poder das redes sociais, algo que nunca foi regulado, diz o CEO de uma grande gestora. Para ele, as chances de ocorrer algo parecido no Brasil são pequenas. B3 e CVM sabem exatamente quem negocia determinado papel, e combinar preços pode ser facilmente classificado como manipulação. 

Na sexta-feira, o Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo abriu investigação para apurar possíveis crimes financeiros envolvendo as ações do IRB, após a forte alta na B3 em 28 de janeiro. A própria bolsa teve que agir, colocando os papéis em leilão, para neutralizar os efeitos da compra articulada por investidores individuais, a exemplo do caso GameStop. 

Os efeitos no mercado podem ser duradouros, diz o executivo. “Tira, de certa forma, o poder de alavancagem dos hedge funds. Vai diminuir a posição ‘gross’ [bruta] 

comprada contra a vendida, desencoraja o short e aumenta a volatilidade.” 

https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/02/08/caso-gamestop-faz-gestor-incluir-rede-social-em-mapeamento-de-riscos.ghtml

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