‘Big Techs’tentam barrar regras nos EUA

No dia anterior à Comissão de Justiça do Senado dos Estados Unidos começar a debater o endurecimento da lei de concorrência no país para as gigantes tecnológicas, o senador republicano Ted Cruz passou 40 minutos ao telefone com o executivo-chefe da Apple, Tim Cook.

Cruz disse que Cook o alertou para o risco de que a Lei Americana de Inovação e Escolha On-Line, cujo objetivo é impedir as grandes empresas de tecnologia de dar tratamento preferencial aos próprios produtos, impossibilite a Apple de permitir que os clientes optem por não ser rastreados pelos aplicativos usados por eles.

No dia seguinte, Cruz, um republicano conservador, conhecido por defender o livre mercado, votou a favor do projeto de lei, aprovado com facilidade por 16 votos a 6. Ele até sugeriu que fosse ainda mais rigoroso, permitindo aos cidadãos processarem as empresas em desconformidade com a lei. 

Se os executivos das “Big Tech” – como são chamadas as grandes empresas de tecnologia – precisavam de algum sinal sobre sua situação atual no Congresso e até que ponto devem ver com seriedade a perspectiva de passarem a estar sujeitos a normas muito mais estritas, esse sinal chegou. 

“Isso é algo enorme”, disse Matt Stoller, diretor de análises do progressista American Economic Liberties Project, que fez campanha a favor do projeto de lei. “Não esperávamos conseguir 16 votos – isso é um grande sinal político.” 

De todas as ameaças regulatórias enfrentadas pelas grandes empresas de tecnologia, desde as novas leis de privacidade até as maiores exigências de moderação de conteúdo, a possibilidade de as autoridades americanas tentarem quebrar seu poder de mercado é uma das mais graves à própria existência dessas empresas. 

Antes da audiência de quinta-feira, eles bombardearam os parlamentares com advertências fatídicas sobre o projeto de lei e suas ramificações. Cook não foi o único executivo-chefe a recorrer ao telefone – Sundar Pichai, chefe da Alphabet, controladora do Google, fez o mesmo. Google e Amazon escreveram declarações se opondo ao projeto, enquanto a Câmara de Comércio dos EUA realizou uma teleconferência para repórteres que trabalham em Washington para detalhar seus receios. 

É um momento delicado para as gigantes tecnológicas em Washington. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, nomeou progressistas nos comandos da Comissão Federal de Comércio dos EUA (FTC, na sigla em inglês) e do departamento antitruste do Departamento de Justiça, que está reescrevendo as orientações sobre fusões e aquisições. 

Essas agências também trabalham em processos antitruste contra Google e Facebook, entre outras grandes empresas tecnológicas, e precisarão avaliar se tentarão vetar a compra da Activision Blizzard pela Microsoft, por US$ 75 bilhões. 

Enquanto isso, congressistas consideram várias outras medidas que fortaleceriam o poder dos reguladores, além do projeto de lei aprovado pela Comissão de Justiça na quinta-feira, defendido por Amy Klobuchar, senadora democrata de Minnesota. 

Entre outras disposições, o projeto de lei impediria as empresas de se aproveitarem irregularmente de dados dos clientes para obter vantagem competitiva e direcionar os resultados das pesquisas em ferramentas de busca para favorecer os próprios produtos dessas ferramentas, uma prática conhecida como autopreferência. Infrações da lei seriam puníveis com penalidades de até 15% da receita da empresa nos EUA. 

Integrantes de ambos os partidos prometem há anos atitudes mais duras para regulamentar o setor, mas essas propostas normalmente acabaram emperrando. A votação de quinta-feira, porém, mostra que agora a fúria contra as Big Tech chegou a tal nível que os parlamentares estão dispostos a deixar de lado questões do passado para conseguirem aprovar algo – uma raridade em um Congresso profundamente dividido.

O projeto de lei tramitou na Comissão de Justiça do Senado, sem qualquer audiência pública. Até mesmo seus defensores admitem que o texto foi redigido de forma vaga, o que dará aos reguladores e juízes uma enorme margem de manobra para determinar exatamente o que se deve considerar como autopreferência. Klobuchar prometeu introduzir mais emendas antes da votação no Senado. 

A velocidade do projeto de lei alarmou alguns dos defensores do setor de tecnologia. Aaron White, diretor de comunicação do Progressive Policy Institute, pró-tecnologia, considerou-o “excessivamente amplo e pesado” e chamou o processo pelo qual foi aprovado na Comissão de “embaraçoso para o Senado”. 

Para outros, contudo, a imprecisão do projeto de lei pode beneficiar as Big Tech. William Kovacic, ex-presidente republicano da FTC, disse que as provisões do projeto, não tão bem definidas, permitiriam que juízes federais se inclinassem para o lado de uma regulamentação mais leve. 

“Joe Biden não terá condições de escolher juízes rápido o suficiente para mudar esse estado de espírito”, disse ele.



A aprovação final está longe de ser garantida. A Comissão de Justiça da Câmara dos .
Deputados aprovou um projeto de lei semelhante, com outros quatro criados para tornar mais rigorosos alguns aspectos da lei antitruste. Mas a maioria deles enfrenta a oposição de um grupo de democratas da ala centrista do partido e da Califórnia, Estado natal do Vale do Silício. 

Zoe Lofgren, uma das deputadas democratas que se pronuncia mais abertamente contra as medidas, disse em dezembro que elas “ainda não acertam o alvo”. Nancy Pelosi, a presidente democrata da Câmara, que também é da Califórnia, ainda não os levou a uma votação no plenário, talvez por ter consciência da dissidência dentro das próprias fileiras. 

Diante da divisão dos democratas sobre os projetos de lei, a postura da Casa Branca pode ser fundamental. Se Biden colocar seu peso político a favor deles, muitos acham que poderia persuadir colegas hesitantes. A Casa Branca deu “apoio técnico” à redação do projeto de Klobuchar, de acordo com autoridades, mas ainda não emitiu comunicado pedindo aos senadores para votarem a favor dele. 

O presidente, que enfrenta problemas em várias outras frentes, incluindo a da pandemia e a da persistente inflação alta, pode decidir ficar de fora de cena. Alguns, entretanto, dizem acreditar que a situação poderia resultar no tipo de medida bipartidária que seria atraente para um presidente em busca de uma grande vitória. 

Mesmo que não seja aprovado, a votação de quinta-feira teve duas vitórias importantes, dizem os defensores do projeto. 

Primeiro, deu um sinal ao Judiciário da preocupação do Congresso com a aplicação das atuais leis de concorrência. “O Senado está dizendo aos juízes que não gosta da maneira como interpretaram a lei antitruste quando se trata das Big Tech, e os juízes darão ouvidos a isso”, disse Stoller. 

Em segundo lugar, rompeu a aura de invencibilidade em torno do exército de lobistas das gigantes tecnológicas em Washington. 

“As empresas de tecnologia exageraram”, disse Stacy Mitchell, codiretora do Institute for Local Self-Reliance, uma organização sem fins lucrativos crítica ao poder das grandes empresas. “As táticas delas ilustram que elas têm muito poder; seus esforços para tentar impedir a lei são um estudo de caso sobre o problema em si.” 

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/01/25/big-techs-tentam-barrar-regras-nos-eua.ghtml

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