Amazônia 1.0, uma realidade a ser encarada

Na Amazônia, os produtores ainda encontram dificuldade para transformar matéria-prima em um produto agrícola, atividade consolidada no resto do país há décadas. Em resumo, predominam o amadorismo e o distanciamento da Amazônia do resto do Brasil. 

O caso acima dá uma dimensão do desafio que a Amazônia e o Brasil têm para construir uma economia baseada nos recursos da natureza. Se a bioeconomia é uma trajetória para o país, e principalmente para a Amazônia, será preciso começar pelo básico, pelo retrato do que é a Amazônia 1.0, isto é, a realidade da qual se parte. Uma casa se constrói a partir de seus alicerces. Difícil estabelecer rumo se partimos de um lugar pouco claro. Caso contrário, ela nunca vai se tornar uma realidade competitiva, capaz de rivalizar como alternativa com o desmatamento, de gerar prosperidade econômica, principalmente para as populações locais. 

No ano passado, a rede Uma Concertação pela Amazônia, liderada pelo seu Grupo de Trabalho de Bioeconomia e após meses de discussão, construiu uma visão sistêmica e mais aberta de bioeconomia, reunindo um espectro que vai da sociobiodiversidade e as atividades ligadas à floresta (manejo, restauração e plantio) à monocultura e produção em grande escala de produtos mais ligados a commodities. Foi consenso entre os integrantes do grupo que o modelo da bioeconomia só será capaz de promover o desenvolvimento sustentável da região a partir de uma visão mais abrangente. A aprovação de um novo Marco Regulatório do Patrimônio Genético e Repartição de Benefícios em 2015 e regulamentada em 2016 foi um momento importante do processo de se criarem as condições para o desenvolvimento deste mercado. Porém, a falta de estrutura no Ministério do Meio Ambiente para implementar esta agenda impediu os avanços necessários. 

Construir soluções capazes de transformar realidades, no entanto, não é algo que acontece da noite para o dia. O primeiro passo para fazer essa agenda avançar é superar a polarização presente nas discussões sobre bioeconomia, que costuma contrapor negócios de grande escala à sociobioeconomia. Há espaço para todos. Há negócios para todos. Há mercados para todos. Essa construção não permite um olhar excludente. No gigantismo da Amazônia cabe tudo: desde a simples produção de castanhas até as sofisticadas biofábricas com tecnologia de ponta da chamada indústria 4.0, como computação em nuvem, automação industrial e inteligência artificial. A pluralidade de caminhos é importante até porque certos grupos sociais não saem do século XIX para XXI instantaneamente. Certas mudanças levam gerações. 

O Brasil tem um ativo em potencial nas mãos, porém ele se encontra em risco porque a biodiversidade da região reside particularmente nas florestas tropicais. Para acessar este patrimônio, é necessário compreender a realidade da Amazônia, bem como as suas ambiguidades. 

Para alcançar a Amazônia 4.0 em escala, a Amazônia 1.0 – dos gargalos logísticos; da falta de fornecedores; da falta de conectividade; dos altos índices de violência; dos conflitos tendo como pivô a terra; da ilegalidade; da baixa escolaridade; da prostituição infantil – precisa ser vista e priorizada. 

Embora exista um imenso esforço da filantropia e de alguns fundos nacionais e internacionais, o negócio da bioeconomia até hoje não saiu da fase de projeto piloto e da experimentação em pequena escala. Os riscos são tão grandes, que os investidores colocam exigências ultra rígidas para se proteger, muitas vezes desconectadas da realidade. Não há como conciliar exigências de conformidade do mundo desenvolvido com esforços locais amazônicos, mesmo quando todos estão de boa-fé. 

Esta é razão pela qual, hoje, neste território, só desenvolve novos negócios quem está habituado a operar sem cumprir a lei – e aí não precisa de compliance – ou quem é idealista, apaixonado pela causa da produção sustentável local. 

No escopo de riscos, o reputacional tem papel crescentemente relevante. A associação da marca Amazônia ao desmatamento; à corrupção; ao crime organizado e à desgovernança, afasta investidores e mercados. Fica o convite à reflexão de todos os atores envolvidos na construção da imagem da Amazônia, inclusive aqueles que, com a melhor das intenções, acabam por reforçar o alto risco de operações na região. A gestão de risco reputacional tem implicado em demandas de “limpeza” de cadeias relacionadas ao desmatamento, e com certa frequência, tem se traduzido em exclusão pura e simples de elos, muitas vezes frágeis dessas cadeias. 

Um bom exemplo é o manejo florestal sustentável de espécies nativas. Não há como se viabilizar concorrendo contra o desmatamento ilegal, amplamente conhecido na região. Em especial, quando este ocorre nas terras das concessionárias, desequilibrando obrigações objeto dos contratos de concessão. 

Na nossa visão, a atração de investimentos capazes de promover negócios em grande escala depende, antes de mais nada, de uma governança socioambiental regional. O marco regulatório atual de acesso ao uso da biodiversidade, mesmo tendo sido revisto, ainda é considerado insuficiente, dificultando o desenvolvimento da bioeconomia. Parte das respostas para estas questões dependem de uma abordagem multissetorial e sistêmica, que exige integração entre protagonistas detentores de agendas distintas. A remoção de vários obstáculos vai depender da interação com outros atores, situados em outros campos, como área econômica, segurança pública, legislativos estaduais, educação e C&T etc. 

Izabella Teixeira, Marcello Brito e Francisco Gaetani fazem parte do programa de fellowship do Instituto Arapyaú. 

Roberto Waak é presidente do Conselho do Arapyaú. 

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/amazonia-1-0-uma-realidade-a-ser-encarada.ghtml

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