No primeiro episódio de “Demon Slayer” [matador de demônios, em tradução livre], uma série produzida por um estúdio da Sony, o herói volta para casa a passos cansados, depois de ter passado o dia vendendo carvão, e encontra os irmãos e a mãe assassinados da forma mais sangrenta imaginável. Momentos depois, ele é atacado pela única sobrevivente, sua irmã, transformada em demônio homicida.
Os fãs do popularíssimo anime [desenho animado japonês], com suas cenas empapadas de sangue, podem comprar leite sabor morango da marca Demon Slayer em lojas de conveniência do Japão. Também podem comprar sanduíches fritos de pão de curry, balas de limão, animais de estimação virtuais e hashis desmontáveis, tudo “Demon Slayer”.
A variada linha de produtos traz bons rendimentos, embora o mais valioso mesmo seja o bolo debaixo dessa cereja. Em 2020, a série de histórias em quadrinhos na qual “Demon Slayer” é baseada vendeu mais cópias do que os nove títulos rivais seguintes somados.
Quando a série saltou da televisão para o cinema em outubro, com o filme “Dekon Slayer: Kimetsu no Yaiba”, este tornou-se o título de maior bilheteria na história do Japão, com arrecadação de US$ 300 milhões, e isso com todas as restrições da covid-19.
A pergunta de um bilhão de dólares é se – agora que a pandemia força o mundo do entretenimento a repensar a distribuição a um público que consome a maior parte do conteúdo em telinhas -, a indústria do anime, com seus mais de 107 mil minutos de produção anual, conseguirá fazer de “Demon Slayer” regra, e não exceção.
Para muitos executivos do setor, o caminho agora está aberto para os desenhos animados japoneses se tornarem verdadeiramente internacionais. Nesse front, uma nova e revigorada Sony concorre contra a Netflix e outros gigantes mundiais do streaming para abrir a ainda inexplorada arca do tesouro de lucrativos animes.
“Fomos obrigados a acelerar os esforços em todas as três frentes, digitalização, expansão global e serviços de streaming. Tornou-se uma questão de ‘ou vai agora ou nunca’ ”, diz George Wada, vice-presidente sênior da Production IG, a empresa por trás de sucessos de animes como “Ghost in the Shell” e “Attack on Titan”. “Estamos no ponto em que a animação japonesa ou se torna grande ou continua [relativamente] pequena.”
Na aparência, o fenômeno “Demon Slayer” é apenas mais uma mania no Japão atrelada a uma onda de marketing. De Pokémon a Power Rangers, Super Mario e Dragon Ball, o Japão já criou muitos frenesis multibilionários da cultura pop, alavancando os direitos de propriedade intelectual em escalas industriais. Esta mania em particular, no entanto, é diferente, segundo analistas, acadêmicos e executivos envolvidos diretamente.
Por trás do sucesso de “Demon Slayer” há uma série de mudanças na estrutura, na propriedade e nas ambições da indústria japonesa de animes, que rende US$ 24 bilhões por ano.
A lista das 25 franquias de mídia mais valiosas do mundo é encabeçada por dois gigantes japoneses – Pokémon e Hello Kitty, com vendas históricas acumuladas de US$ 92 bilhões e US$ 80 bilhões, respectivamente – e inclui outros nove nomes japoneses. Tal sucesso, porém, esconde por trás dos títulos mais populares uma tendência a subaproveitar a mina de ouro dos animes, Há falhas em resolver muitos problemas estruturais, além de práticas laborais altamente criticadas, segundo analistas.
Essas deficiências, contudo, passaram a ser revistas, e de forma acelerada, depois de um ano de confinamento forçado e de crescimento na audiência.
O novo poder de atração exibido pelos animes e seu potencial de lucro no mundo digital estão transformando a forma como as empresas de mídia olham para o gênero.
Enquanto analistas e estúdios debatem se o anime japonês conseguirá ou não subir ao palco principal do mundo do entretenimento, alguns especialistas acreditam que, pelo menos para seu modelo de negócios, isso já está garantido.
O merchandising, jogos e outros ecossistemas de geração de receita criados por títulos como “Demon Slayer”, “One Piece” ou “Gundam”, que há muito tempo são a norma no Japão, agora estão moldando a forma como Disney, Netflix e outros lidam com seus próprios modelos.
“Há mudanças em andamento no Japão, mas, ao mesmo tempo, penso que estamos vendo o mundo correndo atrás dos modelos ‘transmídia’ que o Japão domina há tanto tempo”, disse Rayna Denison, acadêmica especializada em culturas de mídia asiáticas e autora de “Anime: A Critical Introduction”.
O sucesso pan-asiático do anime “Your Name”, de 2016, despertou um interesse maciço da Netflix no gênero, assim como o de outros serviços de streaming. Até o Studio Ghibli, altamente zeloso com suas produções, assinou um acordo com a HBO Max em 2020, seu primeiro, com um serviço de streaming dos Estados Unidos. Fundado pelo lendário animador Hayao Miyazaki, o estúdio é mais famoso do Japão.
Os estúdios de anime e as editoras de mangá vêm dinamizando a forma como suas
produções são financiadas e a estrutura de propriedade dos direitos.
A Toho, maior operadora de cinemas do Japão, encabeça uma ofensiva cada vez mais intensa do setor de mídia em geral para ter um envolvimento mais direto nesses processos.
“A Toho vem tentando crescer como produtora de conteúdo. Agora está em meio a uma mudança de filosofia e da estrutura de lucro. Eles serão mais agressivos”, diz Shinnosuke Takeuchi, analista do banco de investimento Jefferies.
Um ponto de inflexão crucial está para ser ultrapassado. Mais da metade da receita dos animes será gerada fora do Japão. Os últimos dez anos frenéticos de fusões e aquisições das empresas japonesas como um todo no exterior foram uma admissão de que, diante do encolhimento do mercado doméstico, o crescimento precisava vir de fora: o anime agora tenta seguir os mesmos passos.
Netflix, Amazon Prime e outros serviços de streaming não vêm apenas fazendo grandes apostas próprias no anime. Também decidiram fortalecer e globalizar conteúdos japoneses que costumavam estar confinados ao mercado doméstico.
Para as empresas de mídia e os estúdios de anime, Demon Slayer exemplifica tanto as possíveis recompensas quanto as crescentes apostas que cada firma precisa fazer em novos títulos. O fenômeno veio à tona em um momento em que o setor parece estar maduro para fusões e aquisições, dizem analistas. Para a Sony, cuja unidade de desenhos animados Aniplex produz a franquia Kimetsu no Yaiba, isso faz parte de uma estratégia mundial maior, de ter mais controle sobre o conteúdo em suas operações de músicas, filmes e jogos.
“Música, filmes e jogos são a santa trindade da Sony, mas eles não funcionam bem juntos. A companhia recentemente asseverou que os animes seriam seu novo conteúdo fundamental. Se a Sony conseguir unir tudo isso, os resultados poderiam ser surpreendentes”, escreveu o analista e autor de “Japanamerica”, Roland Kelts, em recente relatório sobre o setor para a corretora CLSA.
Outras corretoras também começaram a recalcular suas projeções para a Sony com
base no fenômeno “Demon Slayer”. Em seu cenário mais otimista, a analista Minami
Munakata, do Goldman Sachs, estima que os direitos de propriedade intelectual poderiam contribuir com 115 bilhões de ienes (US$ 1,1 bilhão) para o lucro operacional da Aniplex, incluindo comissões pelo licenciamento de brinquedos e outros personagens, assim como a renda pela distribuição das versões por lançar de jogos do anime para consoles e aparelhos móveis.
“Muitos investidores acham que ‘Demon Slayer’ é algo temporário para a Sony, mas não pensamos assim”, diz Munakata. “A Sony está em ótima posição para alavancar sua PI [propriedade intelectual] para uma plataforma mais ampla, globalmente.”
A Sony empreendeu uma ofensiva agressiva nesse segmento nos últimos anos, evidenciada pela compra por US$ 1,2 bilhão do Crunchyroll, serviço de streaming de animes da AT&T, em dezembro. Executivos do setor destacam que com isso o grupo japonês ganhou uma infraestrutura mundial com 3 milhões de assinantes, que lhe permitirá concorrer em melhores condições contra os quatro maiores gigantes do streaming: Netflixe, Amazon, Disney e HBO Max, da WarnerMidia.
Sem a escala das rivais globais, a Sony segue deliberadamente uma estratégia diferente, de compra de serviços de streaming específicos de anime, com forte conteúdo local e assinantes fiéis, com a ideia de replicar seu sucesso nos jogos eletrônicos, graças à forte base de 114 milhões de usuários do PlayStation 4. O negócio com a Crunchyroll veio na sequência da compra de fatia de 95% na distribuidora de animes com sede nos EUA Funimation Productions em 2017 e do investimento de US$ 400 milhões no site chinês de compartilhamento de vídeos de desenhos Bilibili.
“Se você quiser manter aqueles que têm alto interesse em animação interessados, você precisa fazer mais do que apenas mostrar o conteúdo. São necessários serviços posteriores, como a oportunidade de formar redes de contatos, de merchandising, de redes sociais”, diz um executivo do setor que acompanha a Sony de perto. “Isso é difícil de fazer para um serviço de streaming generalista, do tipo ‘coma tudo o que puder’, como a Netflix ou a Amazon.”
Em muitos aspectos, a maior presença da Sony na animação era esperada há tempos. Executivos argumentaram reiteradamente que o anime era um encaixe natural para seu rico portfólio de entretenimento, que inclui músicas, programas de TV, filmes e
jogos do PlayStation. Analistas dizem, contudo, que a iniciativa da Sony deveria ter começado muito antes de o interesse mundial nos desenhos japoneses ter inflacionado os valores. “A investida da Sony na animação japonesa teria sido mais visionária se tivesse se dado há dez anos”, diz o analista Damian Thong, da Macquarie. “A Netflix pode ter vantagem em termos de recursos totais e de tamanho da audiência.”
Similarmente à forma como os negócios da PlayStation evoluíram separados da estratégia como um todo do grupo, historicamente a Sony tem encontrado dificuldade para integrar seus múltiplos serviços de anime com as operações de música, filmes e jogos. Fontes próximas à empresa culpam o estilo compartimentalizado da Sony, que já impediu unidades ferozmente independentes dentro da empresa de coordenar suas estratégias. O resultado é uma estrutura organizacional fragmentada na qual, até recentemente, a Funimation era administrada pela Sony Pictures Television, com foco no fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual e nas franquias nos EUA, que foi bem-sucedido. Paralelamente, a Aniplex e seus serviços de streaming estavam sob a alçada da Sony Music Entertainment, com grande parte da ênfase em desenvolver conteúdo para o mercado japonês.
Sob o comando do executivo-chefe Kenichiro Yoshida, a Sony deu passos significativos para reparar as divisões internas e aproveitar melhor a força de seus portfólios de entretenimento. Em 2020, antes do negócio com a Crunchyrool, fundiu o serviço de streaming francês Wakanim e a distribuidora australiana Madman Entertainment, ambas da Aniplex, com a Funimation, criando uma plataforma unificada.
Enquanto a Sony colocava a casa em ordem, Amazon e Netflix expandiram de forma constante sua presença no Japão, promovendo mudanças fundamentais não apenas em como seu conteúdo é produzido, mas também na forma como é financiado. Perguntada sobre sua estratégia, a Amazon informou estar “plenamente
comprometida” com o conteúdo anime. “Os fãs no Japão e ao redor do mundo verão mais desse gênero sendo lançado por nós. Isso está apenas nos primeiros dias”.
Nos últimos anos, a rival Netflix também investiu para contratar talentos no Japão e desenvolver laços com os estúdios de animação. Os serviços de streaming internacionais agora são grandes fontes de financiamento para a produção da animes, substituindo os distribuidores tradicionais de vídeos e DVDs. Sua influência cada vez maior, assim como o grande poder financeiro, faz com que os estúdios agora tenham que pensar em uma audiência mundial já desde o começo da produção, em vez de simplesmente exportar sucessos locais para os mercados internacionais.
“Precisa haver uma transição na mentalidade, do doméstico para o global. Isso levará a uma polarização entre os que forem bem-sucedidos nessa transformação e os outros, que ficarão encarregados de atuar como terceirizados”, diz Soichiro Fukuda, analista sênior da firma de consultoria Frontier Management.
A ofensiva agressiva da Sony nos animes, possivelmente atrasada, levanta duas questões centrais. A primeira, que deverá desenrolar-se nos próximos anos, é se a estratégia que finalmente unificou as forças da Sony em conteúdo e hardware realmente estará à altura das esperanças que despertou nos investidores – as ações da Sony chegaram a seu maior patamar em 21 anos. A outra, mais imediata, é se o resto do setor de animes está bem-posicionado para replicar o sucesso da Sony ou, potencialmente, sobressair-se com algum modelo melhor.
Os sinais são desencontrados. Depois do sucesso de “Demon Slayer”, a atenção dos analistas se voltou para o potencial de crescimento de um setor até então voltado aos limites domésticos e que outrora acabou se globalizando de forma cautelosa ou acidental, mas que agora pode estar fazendo o mesmo de forma revigorada e mais empenhada no lucro.
Ainda há, no entanto, um foco doméstico e um conservadorismo arraigados, que podem provocar solavancos, segundo Kelts. Por muitos anos, as vendas internacionais, mesmo dos grandes estúdios, foram administradas sem grande coerência. As perdas de propriedade intelectual por meio de pirataria e sites de streaming pouco policiados foram um dos principais canais que fizeram o anime construir sua base de entusiastas pelo mundo. Além disso, estúdios menores, acrescenta, carecem da sofisticação para aproveitar o potencial de seu conteúdo.
“Se você olhar para o ‘Demon Slayer’ e os grandes estúdios, como a Aniplex, eles tiveram um ano fantástico. Os pequenos estúdios, por sua vez, estão morrendo. Essas mudanças na indústria sobre as quais todos estão falando são reais para os grandes. Mais para baixo, eles estão pagando os funcionários muito mal, perdendo oportunidades e deixando de mudar o que precisam mudar”, disse Kelts.
Ainda assim, Kelts reconhece que o ímpeto geral parece positivo. Nos dez anos até 2012, o setor de anime japonês ficou estagnado, segundo a Associação Japonesa de Animações. Nesse ano, a maré virou e as vendas cresceram a uma taxa composta anual de 9,4% até 2019. A previsão média das firmas de analistas indica que o setor crescerá dos atuais US$ 24 bilhões, em 2019, para US$ 33,6 bilhões em 2026. Grande parte disso se baseia na teoria de que a globalização alimentará a expansão.
“Sabemos há muito tempo que a PI japonesa reverbera pela Ásia, mas acredito que está ficando cada vez mais claro até que ponto essa PI pode realmente fazer maravilhas em termos de vendas de conteúdo digital e merchandising”, diz Jay Defibaugh, analista da CLSA, citando as formas pelas quais a propriedade intelectual dos grupos japoneses de jogos e brinquedos, como a Konami e a Bandai Namco, teve altos sucessos recentes na China.
Para a Toei e outros grandes estúdios de anime, encabeçando o setor como um todo, a receita externa deverá superar a doméstica pela primeira vez. As ambições globais, com foco particular no potencial de crescimento na China e Ásia, são sustentadas pelo crescente aperfeiçoamento dos executivos japoneses de animes. O consórcio de investimento e desenvolvimento por trás do “Demon Slayer” envolveu apenas três empresas, um contraste gritante com os grupos maiores, mais conservadores e lentos, de 10 a 12 empresas, que tradicionalmente eram formados.
“[Agora] é difícil operar um negócio unicamente no Japão”, diz Wada, da Production IG. “Em vez de um processo de dois estágios no qual entregávamos títulos que eram êxitos no Japão para o resto do mundo, agora precisamos nos empenhar em conteúdo que fará barulho não apenas no Japão, mas internacionalmente.
https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/01/26/um-matador-de-demonios-anima-a-sony.ghtml