Que Estado é este?

Por Carlos Frederico Lucio

Qual o papel do Estado? Quais suas principais prerrogativas e funções? O que se deve esperar dele? Refletir rapidamente sobre as manifestações populares que vem ocorrendo no Brasil é algo muito complexo. Optei pelo viés de pensar rapidamente sobre o que se espera do Estado, como forma de incrementar um debate necessário, função deste blog.

É interessante que, observando o tratamento que tem sido dado pela mídia às manifestações ocorridas em São Paulo e no restante do Brasil, cujo pivô de deflagração foi a majoração de preços no sistema de transporte coletivo, pouco se vê de reflexão (em particular nos editoriais dos jornais) sobre estas questões postas acima. Salvo algum blog  ou outro, mesmo que mantido pela grande imprensa, expresse a opinião do seu redator a este respeito.

Pontuando desde os levantes da Tunísia, naquele não tão longínquo janeiro de 2011, que deflagrou a denominada “Primavera Árabe”, passando pelas reações da população de vários países europeus gravemente afetados pelo acirramento da crise econômica (em particular a Grécia e, mais recentemente, a população cipriota) até os eventos recentes na Turquia e, agora, no Brasil, é muito curioso a distinção de tratamento que tem sido dado a esses fatos por parte da imprensa. E, mais ainda, a enorme diferença de tratamento que as políticas de diferentes estados no Brasil, tem dado às manifestações. Isso revela, entre outras coisas, o tom autoritário que tem sido dado a essas questões aqui: lá é um levante, uma manifestação; aqui, vandalismo.

Antes de mais nada, reiterando o que disse recentemente em uma entrevista a um programa de televisão, não nos esqueçamos de que esses eventos – como nos lembra o velho e bom (infelizmente muito pouco lido) Max Weber – na sua origem, possuem uma multiplicidade de fatores imbricados de tal maneira uns nos outros que se torna impossível analisá-lo sem fazer um recorte. Por isso, para este rápido texto, eu separaria três que considero os mais relevantes (pelo menos do ponto e vista da análise de um espaço como este aqui, tão exíguo para um fenômeno tão complexo): de um lado, o papel e as responsabilidades do Estado com as consequentes expectativas não atendidas da população e o alto grau de insatisfação gerado; isso produz uma demanda aparentemente reprimida na população por concretizar os ideais e valores da cidadania, expressar sua insatisfação e aquilo que pensa; e, por último, as eventuais e pontuais ações classificadas como vandalismo que, mesmo não sendo parte do cerne do movimento, estão presentes contribuindo para uma lógica metonímica da parte pelo todo e que é usado, na força retórica, para desqualificar e deslegitimar o movimento. (Como se seus organizadores é que tivessem que controlar os vândalos. Pensar isso não é diferente de pensar que eles também são responsáveis pelo batedor de carteira que se aproveita da aglomeração para praticar seu delito.) Peço desconto do leitor por ser um texto de blog e não sei se lograrei êxito, num espaço tão curto, para tratar dos três, mas vamos lá.

Antes de mais nada, eu gostaria de fazer um brevíssima distinção aqui para ficar menos obscura a argumentação: aquela entre Sociedade Civil, Estado e Governo. A primeira seria a totalidade, o conjunto de pessoas vivendo juntas e organizadas de acordo com os vários parâmetros sociais vigentes (cultura em comum, crenças, instituições etc.); a segunda, seria a instituição que, separada logicamente da primeira, dela deriva e é construída para gerenciar e administrar aquilo que é do interesse da coletividade, garantindo a todos o pleno exercício de suas potencialidades; a terceira, seria a forma como diferentes grupos se apropriam da segunda para imprimir o seu próprio jeito de gerenciá-la. Sendo mais concreto, é assim que falamos, por exemplo, da Sociedade Brasileira, do Estado Brasileiro e do Governo Vargas, Governo FHC, Governo Lula, etc. Costumo sintetizar em sala de aula: Estado é a instituição; Governo é a execução desta instituição sob uma forma específica. Sociedade Civil seria a instância de onde as duas primeiras derivam e a quem elas deveriam servir.

Para ser coerente com a atual concepção do Estado brasileiro (que, pelo menos em tese, parte de um pressuposto liberal – não confundir com liberalismo na economia – traduzido, grosso modo – pela trilogia francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade – aqui entendida como os laços de coesão que unem as pessoas na consciência de ser “uma sociedade”, “uma nação”), da vasta literatura em ciência e filosofia políticas para tratar das questões do Estado, eu tomaria dois autores que me parecem bons para pensar este problema: Max Weber (com sua concepção do Estado como ordenamento institucionalizado da sociedade e detentor legítimo do monopólio do uso da força) e o norteamericano John Rawls (com sua releitura do pacto social e a ideia de um Estado que consolide os valores da Justiça e da Liberdade). Sendo extremamente sintético, para Weber, por ser o detentor do “monopólio do uso da força”, o Estado deve expressar, como instituição, o máximo de racionalidade (cálculo que envolve custos – não apenas financeiros -, meios e os fins que se queira atingir) e não a vontade pessoa e os interesses de seus governantes, para garantir, de maneira impessoal (e, por isso, equitativa e justa) o funcionamento da sociedade, usando em última instância a força para garantir, de forma justa, ao mesmo tempo o ordenamento social e essas mesmas liberdades individuais. Tal seria a tarefa de um Estado “gerencial” (termo inclusive que remete ao universo das organizações empresariais pautadas pela racionalidade do sistema campitalista). Em Rawls, encontramos, somado a esta ideia, a necessidade de que o Estado realize esta justiça garantindo as liberdades individuais (dentro de um quadro do que é possível em termos sociais). Aquilo que Kant e outros filósofos oitocentistas chamariam de “Paz Social”. Vamos nos lembrar que os vários significados desta palavra nos remontam à sua raiz etimológica e ao significado que possui, por exemplo, em inglês: “jus”, “fair”, aquilo que é na medida, equilibrado (imparcialidade e equilíbrio expressos simbolicamente na figura da venda e da balança nas sua várias representações iconográficas).

Se observarmos a história da formação do Estado brasileiro, vamos observar que nas sucessivas construções governamentais (desde o período colonial até o presente) foram muito poucos os momentos em que houve efetivamente participação da sociedade brasileira na sua constituição. E mais, como nos lembra o grande pensador político Raymundo Faoro: uma perene apropriação das esfera do Estado para atender aos interesses de uma elite, na mais pura tradição Patrimonialista. Muito simbólico é o fato de que a constituição da nossa república foi um golpe militar da elite imperial que, antevendo a perda do poder, conseguiu nele se manter, confirmando a exclusão da sociedade civil na sua construção; e, não raro, colocando-a a seu serviço para a manutenção do status quo. Muito significativo é que, em plena “república” continuemos a chamar de “palácio” (termo que remete à monarquia) a sede dos governos (municipal, estadual ou federal). Nesse processo de construção marcadamente autoritária, muito pouco aprendemos na tradição brasileira sobre a efetiva democracia. Democracia, em muitos discursos, aparece apenas como “momento do voto”. E ponto! Para o grosso da população, as coisas (e pessoas) do Estado, são elementos distantes, a quem devemos obediência e de quem podemos ser “vítimas da força”, caso não obedeçamos. Mantendo a lógica monárquica e patrimonialista, da mesma forma, as pessoas que ocupam estes postos, não são vistas como “servidores” (embora as denominemos assim), mas como aqueles a quem servimos. E, em última instância, as estruturas do Estado (e da segurança) são estruturas para garantir esta ordem assim instituída. Nesse sentido, o Estado que deveria proteger e preservar a garantia das liberdades individuais e qualidade de vida do cidadão, é exercido, entre nós, como campo privado dos interesses de uma minoria de “Donos do Poder”, parodiando o título do clássico livro de Faoro.

Historicamente, essa exclusão do poder tem gerado em setores expressivos da sociedade civil, um clamor por uma participação e a construção de uma cidadania mais condizente com o estatuto de um Estado verdadeiramente liberal e democrático. Este clamor, muitas vezes duramente reprimido pela maciça inoperância deste mesmo Estado, vez ou outra explode em movimentos sociais não raro duramente reprimido pelas suas forças de segurança, usando a prerrogativa da legitimidade do “monopólio do uso da força” e sob a alegação de “manutenção da ordem” (a questão é “que ordem”?). Igualmente do ponto de vista histórico, tem sido a juventude a parcela mais significativa da população, que protagonizam estes manifestos contra a exclusão da cidadania (não nos esquecendo, claro, dos movimentos sindicais, indígena, de trabalhadores rurais etc.). Um exemplo na história contemporânea brasileira, foi o movimento dos caras-pintadas, importante elemento que compôs o quadro político que mobilizou a opinião pública levando ao impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992. (Eu sempre gosto de lembrar também da Inconfidência Mineira, dos movimentos abolicionistas e republicanos no século XIX, todos levados a cabo por jovens.) Como toda multidão, esses grupos, pela sua própria dinâmica, não possui a racionalidade preconizada para os grupos instituídos (como o Estado, por exemplo). E, por isso mesmo, é de se esperar que sejam imprevisíveis as consequências de suas ações. Caberia, portanto, ao Estado “Racional”, um planejamento, desenvolvimento de estratégias, um gerenciamento propriamente dito, para lidar com estas ações coletivas de maneira a cumprir o seu duplo papel, fundamental, para a construção da democracia: ao mesmo tempo em que preserva a ordem social, assegura a integridade dos manifestantes e a liberdade do exercício de seus movimentos sociais. Resumindo, a plena democracia.

Se, entre as consequências imprevisíveis dos movimentos sociais, ocorrem ações de vandalização e destruição, violência etc. deveria ser dever do Estado o desenvolvimento de competências para cumprir o seu papel de evitá-las (usando a prerrogativa racional à la Max Weber) com o menor custo possível, preservando o necessário direito de que elas possam ocorrer. Infelizmente, não é o que temos visto.

Se o Estado é racional por seu pressuposto, o que temos visto recentemente, é que seus governos deixam de sê-lo na medida em que sua polícia perde totalmente o controle da situação, revelando uma incapacidade de exercer minimante sua função garantindo o direito da sociedade civil ao mesmo tempo em que evita os excessos cometidos por alguns. É um governo que exibe uma polícia que só tem um propósito: não importa se agride a lógica do Estado, deve garantir o poder instituído, mesmo que isso custe o olho de uma jornalista ou a prisão de pessoas que se manifestam pacificamente. Um ponto importante: é de uma retórica totalmente ilógica e agressiva á inteligência mínima classificar as manifestações como violentas quando, como se viu, muitas delas sendo o resultado de uma reação à própria truculência do Estado. Ou seja, o próprio Estado entra na irracionalidade de uma violência desmesurada, deslegitimando sua ação. Não há justificativa. Torna-se um Governo que escancara a sua fragilidade oriunda de uma total falta de competência de ser o exercício de um Estado democrático de direito.

Democracia não se constroi apenas com o voto. Isso é confortável para quem está gerenciando o Estado. Quando a situação chega ao limite da insatisfação generalizada, as manifestações tornam-se mais que legítimas, necessárias. E um estado democrático de direito, exercido por governantes igualmente democráticos, deveria estar atento para isso.

Afinal, o que é um Estado de Bem Estar Social e um Estado de Direito? A quem ele deve “servir”?

Comentários estão desabilitados para essa publicação