Premiar erro dá coragem para inovar sem medo

Em 2018, os funcionários da farmacêutica Sanofi foram convidados a participar de uma votação curiosa: escolher o maior erro cometido dentro da companhia no ano anterior. Organizado pela própria empresa, o concurso recebeu 22 candidaturas a “erro do ano” e teve votos de 184 funcionários. Os ganhadores – uma equipe de uma das marcas de medicamentos que tentou promover, pela primeira vez, distribuição de amostras para médicos, mas na pressa descobriu que o processo disponível não era adequado – levaram para casa prêmios simbólicos, entre eles um “vale-coragem”, que representava a aprovação por parte da empresa de que a equipe, apesar do erro, agiu certo.
Nos últimos anos, muitas companhias deram início a uma corrida para
 promover mais inovação internamente e assim sobreviver em um mundo marcado pelo desenvolvimento rápido da tecnologia e pela chegada de novos players aos mais variados mercados. Criação de áreas de inovação, parcerias com startups, mudanças para espaços de coworking, tentativas de transformar a cultura e uma sopa de letrinhas de novos jargões importados do Vale do Silício tomaram conta do discurso de altos executivos. Mas em um mundo corporativo avesso a erros, muitas companhias esbarraram, assim como os funcionários da Sanofi, em uma das características mais comuns aos processos de inovação: antes de acertar, é preciso experimentar, testar e, por consequência, errar.
A Sanofi decidiu criar iniciativas para diminuir o estigma do erro entre suas equipes quando a empresa percebeu que o crescimento da companhia estava sendo sustentado pelo lançamento de novos produtos, conta o diretor de recursos humanos Pedro Pittella. “Olhando para a frente, vimos que sem mais inovação não íamos bater metas”, diz. A empresa, que está no meio de uma mudança cultural que deve durar até 2020, identificou com pesquisas de clima que para ter mais inovação precisaria diminuir o medo de errar dentro do ambiente de trabalho. A palavra “coragem” foi listada como um dos valores da organização, e um comitê de funcionários foi montado para pensar em ideias práticas para acompanhar o discurso.
O concurso de erros veio junto com a formulação de uma “régua” com sete níveis diferentes de erros, do “inadmissível” ao “bom”. “Não é qualquer erro que está valendo, um erro de compliance, por exemplo, não é aceitável”, diz Pittella. Já erros decorrentes da experimentação, como o vencedor, foram considerados positivos. A premiação aceitou indicados a melhor acerto e a melhor erro, e as equipes enviaram vídeos que ficaram disponíveis na intranet da empresa para os funcionários votarem no preferido. Ao todo, 39 vídeos foram recebidos de 10 áreas da empresa – o saldo total foi de mais erros do que acertos. A nova edição do concurso, que vai escolher o maior erro de 2018, já está em andamento.
A expectativa é que, como parte do processo de expor os erros, os funcionários conversem mais sobre os equívocos e o que aprenderam com eles. “Não é só o alto escalão que faz essas coisas acontecerem, a companhia inteira tem que estar na mesma vibração porque um processo de produto passa por várias áreas”, diz Pittella.
O nome da premiação da Sanofi é “Oops. Lições Aprendidas”, nome emprestado de um conceito já tradicional na área de gestão do conhecimento: o mapeamento do que deu certo e do que deu errado após o término de projetos e o registro de “lições” para que iniciativas futuras possam evitar cometer os mesmos erros. Dessa forma, o aprendizado não fica restrito à memória dos participantes – que podem deixar a companhia – e é formalizado como conhecimento institucional.
Na Siemens PLM, reuniões de avaliação acontecem após o término de projetos estratégicos. É quando a equipe se reúne e analisa o que deu certo e o que pode ser tirado como uma “lição aprendida”. O relatório final fica disponível em um banco de dados interno, que pode ser acessado por qualquer funcionário. “As reuniões de troca de experiências e avaliações de projetos são bastante importantes, pois assim aprendemos a lidar com o erro. Compartilhar essas informações internamente evita problemas similares no futuro”, diz Naira Barros, gerente de RH da empresa.
O consultor Rafael Souto, CEO da Produtive, acha que, mesmo quando adota o discurso de incentivo à inovação, a maioria das empresas ainda é muito pouco tolerante ao erro na prática. “No dia a dia, as organizações ainda são totalmente focadas nos resultados de curto prazo”, diz.
Em seu trabalho com outsourcing, ele diz já ter encontrado executivos que foram demitidos após projetos de inovação não darem resultado imediato – o que, na sua opinião, manda uma mensagem muito ruim para o resto da empresa. Para Souto, é preciso separar os erros que acontecem por imperícia ou vaidade – ignorar dados que apontam para um resultado negativo, por exemplo – daqueles que são fruto da experimentação, da curiosidade e da iniciativa.
Uma série de pesquisas publicadas no ano passado na “Harvard Business Review” fez um retrato das dificuldades que a curiosidade e a experimentação enfrentam dentro de grandes empresas. Em um estudo com 250 funcionários, a professora de Harvard Francesca Gino fez uma série de perguntas para medir a curiosidade de profissionais que haviam acabado de começar um novo emprego. Seis meses depois, fez uma nova medição e descobriu que o nível de curiosidade deles havia caído em média 20%. Cerca de 70% dos 3 mil respondentes de outro estudo disseram que enfrentam barreiras para fazer questionamentos dentro da empresa, e apenas 24% reportavam sentir curiosidade no ambiente de trabalho.
Uma pesquisa do Insead com 23 mil profissionais de todos os níveis hierárquicos apontou que, enquanto 83% dos executivos dizem encorajar “bastante” a curiosidade nas suas empresas, 52% dos demais funcionários concordam com eles. Cerca de 50% das chefias acreditam que a curiosidade é recompensada financeiramente, mas só 16% dos demais profissionais acham o mesmo. “Se você não consegue criar uma distinção no jeito de operar e avaliar as pessoas para permitir que o erro de inovação não seja redutor de performance, não há cultura de inovação”, diz Souto.
Pedro Waengertner, cofundador da ACE, aceleradora de empresas que faz projetos de inovação dentro de grandes companhias, acredita que a dificuldade de ter um ambiente mais aberto à curiosidade e mais tolerante ao erro vem da herança industrial do Brasil. “Os líderes de pensamento da gestão brasileira vieram da indústria, e nessas empresas há uma cultura forte de controle e otimização. O reflexo disso é a baixa experimentação, porque normalmente nesse contexto os erros são grandes e caros”, diz.
Os projetos de inovação corporativa promovidos pela ACE usam metodologias ágeis, baseadas na experimentação, e tentam ensinar as empresas a “errar rápido e errar barato”. O primeiro contato que funcionários têm com esses métodos, no entanto, costuma ser repleto de cinismo, diz Waengertner. “Por mais que eu diga que ali eles podem errar e experimentar, eles me olham desconfiados”, afirma.
Por isso, uma parte importante dos projetos é treinar as lideranças da empresa para receber os resultados do programa. Waengertner costuma explicar que as apresentações muitas vezes estarão inacabadas, e também que os executivos não precisam se sentir obrigados a dar soluções imediatas para as questões levantadas ali. “Nesse contexto, o líder tem que ser um facilitador, mas a gente não foi educado para isso”, diz.
Com a popularização de projetos de inovação em grandes empresas, Waengertner diz que o risco é que essas iniciativas virem apenas “conversa de golf”, na qual executivos competem sobre quem inovou mais – quem tem mais equipes no coworking da moda ou quem mandou mais executivos para o Vale do Silício. Gerar desconforto dentro da empresa – e nos próprios executivos – é uma parte fundamental da equação. “Inovação não é o espaço, não é o contato com startups, inovação é fazer coisas”, afirma.

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