No final da reunião anual da comunidade de segurança dos EUA e da Europa, ontem em Munique, o organizador Wolfgang Ischinger, ex-embaixador alemão nos EUA, ofereceu uma triste conclusão: “Temos um problema real”.
A natureza desse problema esteve em exibição durante os três dias do evento: os EUA estão em conflito não apenas com as grandes potências rivais, a Rússia e a China, mas também com seus aliados na Europa e com elementos do sistema internacional que os próprios americanos ajudaram a criar.
Igualmente tangível era o medo de que esteja se dissolvendo a cola de valores democráticos compartilhados que uniu países ocidentais com interesses econômicos e de segurança historicamente diversos.
Foi possível identificar essa divisão por meio das mãos que bateram ou não palmas durante o discurso do vice-presidente americano, Mike Pence, numa sala lotada com cerca de 600 delegados, incluindo presidentes, premiês e ministros da Defesa, no sábado. Pence reivindicou uma liderança renovada dos EUA sob o presidente Donald Trump. Recebeu poucos aplausos, vindos principalmente de autoridades dos EUA.
“Acabamos de ver dois dias que dizem que isso [a liderança dos EUA] é manifestamente falso”, disse Kori Schake, ex- diretor de Estratégia e Requisitos de Defesa do Conselho de Segurança Nacional do presidente George W. Bush e hoje vice- diretor do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres.
Schake, que é republicano como Trump, apontou para o silêncio constrangedor durante as pausas nos dois discursos de Pence – já a premiê alemã, Angela Merkel, foi aplaudida de pé.
Igualmente chocante para muitos foram as exigências do vice-presidente americano de que França, Alemanha e Reino Unido se juntem aos EUA para se retirar do acordo nuclear de 2015 com o Irã – um acordo que os europeus tentam salvar esforçando-se para ajudar as suas empresas que negociam com Teerã a evitar as novas sanções americanas.
Outras posições dos EUA que enfrentam níveis variados de resistência incluíam a oposição aos planos alemães de um novo gasoduto com a Rússia e uma possível guerra comercial entre EUA e União Europeia, se os EUA designarem os automóveis importados da UE como ameaça à sua segurança nacional.
“As ações dos EUA estão preocupando muita gente [na Europa], que estão pensando, bem, o que fazemos? Vamos adiante sozinhos?”, disse o ex-presidente da Estônia Thomas Ilves.
A resposta, por enquanto, é não.
O guarda-chuva de segurança e a influência econômica dos EUA são grandes demais. Mesmo aqueles que propõem um Exército europeu reconhecem que, sem os EUA e depois da saída do Reino Unido da UE, seria impossível garantir a segurança do continente.
A ida a Munique de uma grande delegação dos EUA, com mais de 50 congressistas dos dois partidos americanos, procurou preencher esse vazio, e o ex-vice-presidente Joe Biden buscou persuadir os aliados dos EUA de que as relações normais serão retomados assim que Trump deixar o cargo.
Mas os europeus também estão divididos pelo governo Trump. A Polônia, sob pressão da UE por supostamente minar as suas instituições democráticas, é um defensor particularmente forte de Trump e sediou uma conferência convocada pelos EUA sobre o Oriente Médio na semana passada.
O secretário-geral da Otan (a aliança militar ocidental), Jens Stoltenberg, enfatizou que os gastos americanos com a defesa da Europa aumentaram significativamente nos últimos anos, assim como os próprios orçamentos de defesa europeus – em parte devido à pressão de Trump.
Duas iniciativas destinadas a resgatar os valores comuns escritos no tratado fundador da Otan, de 1949, expuseram um temor mais amplo de que eles não sejam mais compartilhados.
A ex-secretária de Estado dos EUA Madeleine Albright estava entre os signatários de uma Declaração de Princípios para a Liberdade, Prosperidade e Paz, que ela descreveu como uma “renovação de votos”. De Munique, ela iria à Polônia e à República Tcheca para persuadir os governos desses países a renovar seu compromisso também.
Uma outra iniciativa de dois ex-representantes dos EUA na Otan, Nicholas Burns e Douglas Lute, produziu um relatório – “A Otan aos 70: Uma Aliança na Crise” – que listou 10 desafios a serem superados, incluindo a ausência da liderança dos EUA.
Na realidade, a Otan sempre foi, em primeiro lugar, uma aliança militar, que aceitou acomodar tanto a Turquia quanto a Grécia quando esses países foram governados por juntas militares. Mas os valores estabelecidos em 1949 se tornaram mais importantes com o colapso da União Soviética, quando a Otan teve de achar um novo princípio aglutinante para além de um inimigo comum, disse Albright.
“Eu estava lá quando estávamos admitindo novos membros e conversamos sobre isso como uma aliança de democracias”, disse ela. Isso era importante, acrescentou, porque a Otan estava “tentando não ser apenas contra a União Soviética, mas em favor de algo”.
Lute e Burns dizem que os problemas atuais da Otan são diferentes de episódios como a crise de Suez, em 1956, ou a crise dos mísseis Pershing dos anos 80. Desta vez, dizem eles, o desafio vem em grande parte de dentro.
“Estava claro em 1949 que havia uma parte democrática e uma parte autoritária na Europa”, disse Burns em entrevista. A Otan foi criada para defender as nações democráticas. A mesma divisão existe hoje, só que agora parte da ameaça autoritária vem de dentro da Otan, de países como a Hungria e a Polônia, segundo Burns, que hoje é professor do Centro Belfer para Ciência e Assuntos Internacionais da Universidade Harvard.
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