Por Denise Fabretti
O Direito tem como função regular o comportamento livre do ser humano, disciplinando os direitos e deveres decorrentes das várias relações sociais e, justamente para cumprir essa função, deve acompanhar as mudanças que decorrem da evolução dessas relações.
Assim, a partir dos textos dos professores Pedro Santi e Carlos Frederico Lúcio, é possível tecer algumas considerações sobre as diferenças do que se poderia denominar de realidade natural em contraposição a realidade jurídica no que se refere ao projeto da “cura gay”.
A realidade natural, para o presente texto, corresponde, obviamente, às situações de fato existentes na sociedade enquanto que a realidade jurídica deve aqui ser entendida como as situações reguladas pelo Direito Positivo ( conjunto de normas em vigência dentro de um determinado território).Ambas são situações distintas como se demonstrará.
A mudança na realidade jurídica ocorre a partir do momento em que o Direito passa a reconhecer determinados fatos inserindo-os no sistema social como categoria jurídico-positivas, ou seja, disciplinando todas as consequências que deles venham a decorrer e , principalmente, fazendo com que seja possível exigir, desse mesmo sistema social, o cumprimento e a aplicação efetiva das prerrogativas e obrigações inerentes a essas consequências.
Assim, ao longo da história, é possível destacar algumas das mudanças decorrentes do reconhecimento, por parte do Direito, de várias realidades naturais e que são pertinentes ao assunto.
O direito do voto das mulheres que foi conquistado no Brasil em 1932 é um dos exemplos. As mulheres eram consideradas ,na prática, apenas aptas para o casamento embora também assumissem, na realidade natural, todas as responsabilidades dele decorrentes. Porém, a capacidade de discernimento que efetivamente possuíam para manifestarem a sua opinião seja política ideológica, cientifica, etc, não lhes era reconhecida juridicamente.
Na Inglaterra do início do século XX, uma vez que as mulheres passavam da tutela dos pais para a tutela de seus esposos, estas não tinham direito à herança familiar que era transmitida sempre ao parente de sexo masculino mais próximo da família o que produzia consequências terríveis para aquelas que , eventualmente, não tivessem a oportunidade de realizarem um “bom casamento”. Percebe-se claramente que eram tratadas como incapazes . O seriado Downton Abbey, em sua primeira temporada, ilustra muito bem essa situação. As obras de Jane Austen também retratam essas nefastas consequências para as mulheres solteiras.
No Brasil, até meados da década de 60, a mulher casada era equiparada aos silvícolas e aos loucos de todo o gênero para efeitos de capacidade civil. Obviamente tal equiparação não correspondia à realidade natural, uma vez que, para a realidade jurídica da época, a mulher tinha capacidade de raciocínio equivalente aos indivíduos que não estavam integrados na sociedade, embora na realidade natural assumisse todas as responsabilidades decorrentes da união conjugal. A legislação entendia, ainda, que o pátrio poder ( basicamente a responsabilidade sobre os filhos) era exercido pelo homem. Este, por sua vez era definido pela legislação civil da época como o cabeça do casal.
Os direitos da mulher ironicamente passaram a evoluir com mais rapidez no Brasil, a partir da década de 70 principalmente com o reconhecimento, como categoria jurídico positiva, do direito a dissolução do casamento através do divórcio. A realidade jurídica anterior que entendia ser o casamento indissolúvel, concedendo o direito apenas ao desquite( que não permitia um novo vínculo matrimonial) foi alterada e trouxe ,como consequência, uma série de alterações em relação aos direitos da mulher e a realidade jurídica começou a deixar de trata- la como uma pessoa não responsável pelos seus atos.
À semelhança do que acontecia com a mulher no passado, que era praticamente tratada como uma pessoa mentalmente incapaz, será o projeto de “cura gay” , se aprovado, uma futura realidade jurídica não correspondente à realidade natural? Ou uma eventual aprovação desse abominável projeto com certeza não encontraria amparo no atual sistema jurídico brasileiro?
A meu ver, a questão pode ser respondida a partir da combinação das contribuições dos professores Pedro Santi e Carlos Frederico Lúcio para este blog.
O Prof. Pedro ao expor seu raciocínio no post de segunda-feira afirma que ser hetero, homo, bi, a, pluri ou outras definições de gênero não são uma escolha a ser julgada moralmente e, certamente, não configuram uma doença a ser tratada. Já o prof.Carlos Frederico comenta em seu post de terça-feira que sendo a Antropologia, no seu sentido etimológico mais puro, a “ciência do homem”, é de se esperar que ela traga luzes para sepultar deste debate os ranços tanto do determinismo biologizante do comportamento sexual, quanto do etnocentrismo que coloca o modelo europeu de sexualidade (e, correlatamente, família, casamento e parentesco) como parâmetro universal a ser seguido por todos.
Tomando-se como premissa que tais afirmações correspondem à realidade natural, se estas forem analisadas em conjunto com o tratamento jurídico que os tribunais brasileiros conferem às relações homoafetivas é possível afirmar que o projeto que considera o homossexualismo como doença não corresponde à atual realidade jurídica do Brasil.
A jurisprudência brasileira é farta em decisões que reconhecem os direitos e obrigações decorrentes das relações homoafetivas. Até 2011 elas eram consideradas uniões estáveis produzindo todos os efeitos jurídicos decorrentes desse tipo de união disciplinada no Código Civil.
A partir do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional a distinção do tratamento legal às uniões estáveis homoafetivas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a resolução que proíbe os responsáveis por cartórios recusarem a celebração do casamento civil ou a conversão da união estável em casamento civil de pessoas do mesmo sexo.
Embora o partido do deputado responsável pelo projeto de ” cura gay” tenha ajuizado um mandado de segurança junto ao STF para tentar impedir a vigência dessa norma, alegando a incompetência do CNJ para regular o assunto por ser este um tema de competência do Poder Legislativo, o STF manteve a validade da resolução do CJN.
Dessa forma é possível afirmar que a tendência do sistema jurídico brasileiro é no sentido de não reconhecer a necessidade e a validade de um projeto tão absurdo quanto esse da ” cura gay” que à semelhança da legislação que equiparava a mulher às pessoas mentalmente enfermas, considera o homossexualismo uma doença. Ao menos é o que se espera de nossos tribunais.