Narcisismos e a sociedade do espetáculo: o ideal do ego na sociedade contemporânea

Por João Matta

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto,
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto,
É que Narciso acha feio o que não é espelho.
Caetano Veloso

O senso comum insiste em disseminar uma noção de narcisismo como prática daqueles que agem pela ordem de um suposto egoísmo e de uma solitária autocontemplação. Nesta forma de pensar, sujeito narcísico seria aquele que só age em seu próprio favor, a partir de um processo de auto-admirarão, como uma reedição do autoerotismo, agora em idade adulta.

Com efeito, a fase do autoerotismo é imprescindível à sexualidade infantil em um sujeito que apenas obtém prazer com seu próprio corpo, sem considerar a existência de um objeto externo. Para Freud, o autoerotismo do bebê se dá anteriormente à constituição do objeto total e da imagem unificada de si mesmo. Nesta fase, o bebê encontra prazer em um local (zona erógena), sem ainda perceber uma unidade corporal.

Não há, então, objeto externo no autoerotismo, ao contrário de sua fase posterior, a do Narcisismo. Ora, o que o senso comum distribui como sentido ao Narcisismo não faz outra coisa senão banalizar tal conceito diminuindo-o a uma característica estereotipada do sujeito contemporâneo pertencente a uma sociedade dita individualista.

O resultado deste processo de banalização do narcisismo é sua eleição como característica ruim, não desejada pelos atores sociais. Segundo este modo de pensar, um indivíduo narcísico seria aquele que age apenas em causa própria, que se auto referencia em toda e qualquer relação que venha a ter com um outro que é desprezado. A ideia de que este sujeito narcísico é independente do outro é uma mera miragem. Sua dependência de um outro que o constitui é marcante e definitiva. Sem o outro, um sujeito não se constitui, visto que é da intersubjetividade que este se constrói.

A proposta de Freud é considerarmos o narcisismo como estruturante na formação do ego, pensando-o como um verdadeiro reservatório de libido, de onde partem os investimentos libidinais do sujeito. Desta forma, o narcisismo apresenta-se a serviço da pulsão de autopreservação do ego, onde a criança investe toda sua libido em si mesma, percebendo-se como objeto. Entretanto, Freud também problematiza em seus trabalhos outra forma de constituição do narcisismo. Um tipo ligado às identificações do ego com um objeto externo, o qual é investido de uma libido que retorna, posteriormente, ao ego, caracterizando o ciclo do Narcisismo Secundário. O primeiro tipo de Narcisismo que discutimos é caracterizado como Primário.

A partir dos investimentos narcísicos dos pais, é constituído um ego ideal, que estrutura e ordena o desenvolvimento das fases da sexualidade da criança. O Narcisismo Primário, então, dota este ego originário de um pensamento onipotente, que busca preservar a “imortalidade” do ego. Entretanto, não faz sentido pensarmos o Narcisismo em termos de quantidade e sim como uma instância psíquica em movimento. Assim, podemos considerar, além de um ego ideal, conforme discutimos, também a existência de outra forma de construção narcísica, um ideal do ego, que é definido a partir de investimentos libidinais a partir de um processo identificação com um objeto externo. O investimento libidinal do ego em busca de algo além dele próprio é constitutivo em um sujeito, independentemente da cultura à qual esteja inserido. Entretanto, a cultura, enquanto construtora e legitimadora de um ideal, é determinante na construção da cadeia simbólica à qual se submete o ego. Desta forma, um ideal de ego é construído a partir do contexto cultural com o qual o sujeito convive.

Atualmente, convivemos com uma mistura cultural que tenciona todo o tempo, presente e passado, local e global, público e privado, masculino e feminino, clássico e moderno. Vivemos misturados em uma colcha de retalhos cultural, onde podemos dizer que temos, ao invés de uma única cultura, muitas que se ordenam pela batuta de uma grande cultura de mercado, que usa a mídia e o consumo como suas plataformas de atuação social. Esta cultura apresenta como valor principal de seu ideal a necessidade de ser visto em público, dos quinze minutos de fama a qualquer preço. Vivemos em uma sociedade, onde participar do espetáculo cotidiano é um imperativo para seus atores sociais.

Na Sociedade do Espetáculo problematizada por Guy Débord (1997), a sensação de ser visto midiaticamente é a mola propulsora de um sintoma social que, de certa forma, o próprio Débord (1997) nos deixou saber através de suas reflexões. Para Sibilia (2008),

há quatro décadas, quando Débord deu a conhecer suas reflexões, ainda estava se delineando no horizonte a espetacularização do mundo que agora vivenciamos com tanto estrépito. Por isso são tão valiosas suas observações acerca das relações que se mercantilizam ao ser mediadas por imagens; bem como a passagem do ser para o ter, e deste último para o parecer […] (SIBILIA, 2008, p. 268)

Paula Sibilia propõe uma discussão em torno de como as TICs[1] têm ajudado na transformação de indivíduos “comuns” em protagonistas de um show particular de exibição pública de sua intimidade. A apropriação da internet por indivíduos em busca de visibilidade serve para se criar uma espécie de festival público de vidas privadas. A rede social Facebook, por exemplo, trabalha alinhada ao imperativo da visibilidade do contemporâneo, desafiando, assim, as fronteiras entre o público e o privado. Deste modo, esta rede social participa do fenômeno atual da busca pela criação de cortinas de aparências para os adolescentes se expressarem e também se promoverem no mundo online. Tal busca demanda certo “monopólio da aparência”, uma disputa por aparecer midiaticamente. A imagem que se pretende ter no outro disputa com a compreensão que se tem de si mesmo. Sendo que esta última, muitas vezes, pode ser colocada em segundo plano.

O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é «o que aparece é bom, o que é bom aparece». A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência. (DÉBORD, 1997, p. 17)

Nesta sua tese de número 12, Guy Débord (1997) denuncia uma busca desenfreada por uma vida mediada por imagens. Um cotidiano intermediado por miragens imagéticas criadas a partir de um mundo midiático, onde o mundo da vida é editado. Um grande teatro é criado pela mídia a fim de que o sujeito contemporâneo realize seus investimentos libidinais em objetos de mercado como marcas, aparatos tecnológicos e serviços de internet. Parece não haver saída. Ou nos moldamos em busca deste ideal de ego apresentado por esta cultura dominante, ou a sobrevivência do próprio ego parece estar comprometida. Entretanto, uma saída para este embate pode ser o próprio narcisismo dos indivíduos, que têm sempre à sua disposição a opção de deslocar seus investimentos libidinais para si, e negar a cultura dominante e seus aparatos midiáticos, apresentados, atualmente, como um ideal da cultura.

BIBLIOGRAFIA

DÉBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 1997.

MIGUELEZ, Oscar. Narcisismos. São Paulo, SP: Escuta, 2007.

SIBILIA, Paula. O Show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2008.
[1] TIC = Tecnologia da Informação e da Comunicação.

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