Por Pedro de Santi
Professor ESPM
O mito conta a história de Orfeu, filho de Apolo (deus da música) e da musa Calíope. Ele era músico, poeta e médico. O grande tema é a perda de sua amada Eurídice. Sua tristeza é tanta que ele ganha a oportunidade de resgatá-la mas, para isto, é preciso mergulhar no Hades, para onde vão todos os mortos (não se trata do inferno cristão). Com a força de sua música, ele enfrenta Cérbero, o cão que guarda a porta do Hades, e as fúrias, que se ofendem com a presença do estranho. A chance do resgate tem uma condição: ele deve trazer sua amada pela mão e não pode olhar para ela até voltarem a ver a luz do dia. Numa versão, ele simplesmente não resiste e olha. Em outra, ela o acusa de falta de amor por não olhá-la nos olhos; ela não sabe e não pode saber da condição que ele cumpre. Pressionado a provar seu amor, ele cede e olha para ela. Instantaneamente, ela morre.
Perdido de dor pela nova perda de sua amada, ele canta. E pelo poder curativo da música, ele ganha de novo o privilégio de ver seu amor renascer. Há ainda outra versão, na qual a peça brasileira se apoiou. Nela, Eurídice é perseguida e morta por Aristeu, a mando de uma mulher que amava Orfeu. Em busca por sua amada, Orfeu também morre. Nesta versão, o tom remete ao Romantismo: o encontro do amor coincide com o fim da espera e do sofrimento da vida, na morte.
O mito de Orfeu e Eurídice foi um tema fundamental da ópera em sua origem no Renascimento. A mais antiga partitura completa de uma ópera de que dispomos é o L’Euridice de Jacobo Peri, de 1600. Monteverdi (em 1607) e Gluck (em 1762) compuseram as obras mais conhecidas sobre Orfeu. Também tivemos uma adaptação histórica no Brasil. A montagem da peça “Orfeu da conceição”, em 1956 gerou uma brilhante parceria musical: foi quando Vinicius de Moraes conheceu Tom Jobim. Daí, nasceram canções como “A felicidade” e “Se todos fossem iguais a você”. Em 1959, o diretor francês Marcel Camus fez um filme a partir da peça: o “Orfeu negro” ganhou a Palma de Ouro em Cannes, além do Oscar e o Globo de ouro como filme estrangeiro, em 1960. No filme, ainda apareceu outra pérola musical: “Manhã de carnaval”, de Luis Bonfá e Antonio Maria. Em 1999, Cacá Diegues refilmou a história; o resultado não fez tanto sucesso, mas a trilha original de Caetano Veloso vale a experiência. Em especial, a canção “Sou você”.
Na ópera de Gluck, a mais conhecida, a personagem de Orfeu foi destinada a Gaetano Guadagni, um famoso castrato à época. Os castrati foram cantores importantes até o século XIX. Eles eram literalmente castrados logo antes da adolescência e, com isto, não desenvolviam certas características masculinas, como ter a voz engrossada. Eles tinham um amplo alcance musical, predominantemente nas notas agudas. Os castratti tinham uma aura andrógina perturbadora. Alguns eram homossexuais, mas outros eram requisitados amantes de mulheres, por sua aura e pela ausência de risco de gravidez. De origem, em geral eram garotos pobres que viam uma oportunidade de futuro. A igreja católica promovia bastante o procedimento, para poder contar com timbres agudos em seus corais tradicionalmente masculinos. No final do século XIX, o procedimento foi sendo banido, pela desumanidade e alta incidência de mortalidade por hemorragia. A história inconveniente foi sendo apagada. Há um bom filme para quem se interesse em conhecer este universo: Farinelli, il castrato, de 1994. Hoje, o papel de Orfeu é cantado ora por sopranos, ora por contra-tenores (o mais agudos timbres feminino e masculino, respectivamente).
Já o filme Orfeu negro teve um destino curioso. Foi muito premiado, mas não é muito bem visto no Brasil por mostrar um Rio de Janeiro extremamente caricatural. A história se passa durante o carnaval e todos estão constantemente dançando e sorrindo. O povo é todo negro, o padeiro e o burocrata, portugueses. A história combina algumas versões: depois de Eurídice ser morta por Aristeu, Orfeu vaga pelo Hades da burocracia (aqui, ele é um inferno mesmo; e um que todos o conhecemos) em busca do corpo da amada. Num ritual de umbanda em clima dionisíaco, Eurídice “baixa” e fala com Orfeu. Ele quer vê-la, mas nesta versão é ela quem pede que ele não se vire, sob pena de perdê-la. Ele não resiste e se volta e só encontra a mulher em quem ela havia incorporado. Adiante, ele ainda reencontra o corpo dela no necrotério e o leva nos braços ao morro. Na peça Orfeu da Conceição, ele é morto sem reencontrar Eurídice. No, filme, há uma confusão, ele cai por uma ribanceira e morre também. A cena final é muito bonita: um menino se torna o novo Orfeu, canta e toca o violão do herói já morto para fazer o sol nascer.
A narrativa do mito de Orfeu é relativamente simples, mas dá margem a inúmeras leituras. Uma possibilidade é tomar a descida de Orfeu ao Hades como uma etapa do mito do Herói. Todo herói é filho de um deus e uma mortal e deve cumprir tarefas sobre-humanas. Uma delas sempre envolve uma descida ao mundo dos mortos. Nesta descida, ele consuma sua história humana, morre e transcende à condição de deus. Outra leitura poderia ver no poder da música de Orfeu um elogio à arte e sua condição de corrigir e realizar todo inacabamento e imperfeição da realidade mundana. Na arte, a morte e as perdas são reversíveis. Música cura.
Sendo psicanalista, vejo Orfeu mergulhado em luto pela perda de sua musa, seu objeto de amor; esta dor é a fonte de seu canto. A visita ao Hades pode ser o mergulho introspectivo em si mesmo, característico do luto. O “Monólogo de Orfeu”, na peça de Vinicius de Moraes diz: “Orfeu sem Eurídice, coisa incompreensível”. O registro da paixão produz uma relação fusional, o que faz com que a perda do objeto seja vivida como perda de si.
No luto, estamos de uma lado tentando nos despedir do objeto e aceitar sua perda e,de outro, na tentativa de resguardar e salvar o objeto perdido internalizado, sob o risco de perecermos abraçados a ele e não nos recompormos. Na saída de um longo trabalho de luto cumprido, não se deve olhar para trás… Senão, permanecemos mergulhados em melancolia, diriam os gregos e Freud.
Nas versões mais felizes, Orfeu renasce, assim como sua amada. A dor pode ser sublimada pela arte e, assim, Eros pode fazer o apego à vida prevalecer. Em versões mais ambivalentes, Orfeu sucumbe também. O encontro pleno com o objeto é mortífero.
Serviço:
Orfeu e Eurídice. Segundo encontro do Opera e Paixão, com Celso Cruz e Pedro de Santi. Dia 18/04, às 13:30 hs, na sala B211. Não é preciso se inscrever e vale ACOM.