Disseminação global dos protestos do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam) mostra como os EUA ainda influenciam o debate moral e político no mundo.
Quando pessoas de Düsseldorf a Jacarta foram às ruas neste mês em solidariedade às manifestações pautadas pelo mote Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) que irromperam após o assassinato de George Floyd, Igoni Barrett estava em Amsterdã.
Romancista nigeriano de ascendência jamaicana, Barrett se viu imobilizado no país de origem de sua mulher desde o início da quarentena pela covid-19. Ele ficou estupefato de ver a quantidade de pessoas que protestavam contra a injustiça racial em cidades de toda a Holanda, em contingentes muito maiores do que na Nigéria, seu país natal.
Europa, com sua história de colonialismo e com suas consideráveis populações minoritárias negras, o problema da desigualdade racial é, paradoxalmente, mais premente, diz ele, do que na Nigéria, com sua população de esmagadora maioria negra.
“Mesmo em uma cidade pequena como Tilburg [no sul da Holanda] houve milhares de manifestantes”, diz ele. “Um grande número de crianças brancas – que ouvem hip-hop ou rap – vê a injustiça do sistema policial ou prisional e diz: ‘Isso não nos representa’.”
A asfixia de Floyd em Minneapolis, perpetrada por um policial branco, angustiantemente captada em vídeo, fez com que pessoas do mundo inteiro examinassem suas histórias nacionais e pessoais de preconceito e injustiça racial.
Assim como o movimento #MeToo desencadeou uma reviravolta mundial das atitudes para com a violência contra as mulheres e os direitos das mulheres, o Black Lives Matter despertou um clamor internacional por igualdade racial.
“A morte de George Floyd e a maneira pela qual ele foi tratado de forma desumana transcenderam os limites dos Estados Unidos e ganharam o mundo. Obrigaram a um autorreconhecimento do passado coletivo de cada um”, diz Ellen Johnson Sirleaf, ex-presidente da Libéria e vencedora do prêmio Nobel da Paz.
Ela diz que as manifestações na Libéria e em outros países são “uma expressão de solidariedade com a nossa diáspora nos EUA e o reconhecimento do que passamos após o tráfico de escravos, a colonização e a exploração dos nossos recursos naturais”.
A exemplo do movimento #MeToo, que começou com revelações sobre o comportamento sexual predatório do produtor de cinema de Hollywood Harvey Weinstein, o apelo por justiça racial se propagou por meio da história de uma única pessoa.
E, como o #MeToo, a natureza mundial da discussão demonstra que, apesar de seus traumas e fracassos, os EUA continuam a ser um parâmetro moral e político para boa parte do mundo. Em um mês em que a Suprema Corte americana determinou que é ilegal demitir alguém por ser homossexual ou transgênero, a cultura americana ainda exerce uma influência de grande peso sobre bilhões de pessoas no mundo inteiro.
“No momento, todo mundo está de olho nos EUA”, diz Ayesha Harruna Attah, escritora ganesa que escreveu sobre a escravidão no oeste da África. “Acho que isso vai acordar as pessoas e não me importo se isso começar nos EUA. Essa é uma discussão que precisava começar.”
Mesmo assim, o que as pessoas têm visto no espelho levantado pelo movimento Black Lives Matter varia muito, dependendo de que lado da história da escravidão, da brutalidade policial e da intolerância racial elas se encontram.
Na Austrália, onde a #aboriginallivesmatter tem sido um “topic trend”, o foco das manifestações está no tratamento dado às populações indígenas que sofrem extermínio em massa, expulsão e encarceramento desde a chegada dos colonizadores brancos no século 18.
A Polônia vem registrando discussões sobre o uso da palavra “murzyn”, termo para designar pessoas negras que tem suas raízes na mesma palavra inglesa “moor”
(mouro) – que muitos poloneses consideram neutro, mas outros acham ofensivo. Em uma manifestação em Varsóvia, uma jovem negra caminhou com um cartaz com os dizeres: “Stop calling me” (“Parem de me rotular”).
No Reino Unido, com sua história marcada pelo colonialismo, a estátua do comerciante de escravos Edward Colston foi derrubada e jogada em um rio em Bristol. Seu fim molhado dividiu as opiniões entre aqueles que abominam a “justiça das massas” e aqueles que viram o ato como um fim merecido para um homem que participou de um comércio em que muitos africanos eram deliberadamente afogados para que seus donos recebessem seguro.
O Oriel College de Oxford dobrou-se a uma pressão de longa data e concordou em remover a estátua de Cecil Rhodes, imperialista britânico acusado por ativistas de estabelecer as bases do apartheid na África do Sul. E na retomada da Premier League do futebol britânico, na semana passada, todos os jogadores ficaram de joelhos antes do pontapé inicial.
Para o Sudão, com sua história recente de genocídio perpetrado por uma elite de domínio árabe contra as pessoas de pele mais escura, incluindo as da região ocidental de Darfur, o assassinato de Floyd teve uma repercussão única.
Muzan Alneel, engenheira que participou de meses de manifestações que derrubaram o ditador Omar al-Bashir no ano passado, diz que o clamor por igualdade racial e a contenção do poder policial e militar vem tendo uma forte repercussão no Sudão.
Em um único incidente em Cartum, em junho de 2019, forças de segurança mataram mais de 100 manifestantes a sangue frio, jogando os corpos de muitos no Nilo. “Para nós, ‘polícia’ e ‘brutalidade’ são sinônimos”, afirma ela, acrescentando que o regime de Bashir direcionava até 70% de seus gastos para manter um aparato repressivo militar – uma estatística que dá um novo significado à palavra de ordem ‘defund the police’ [“parem de financiar a polícia”], que se tornou um mote das manifestações nas cidades americanas.
Para Alneel, a diferença entre os ideais expressos na Constituição dos EUA e sua realidade, é há muito a característica mais irrefutável da história americana. “Não são muitas as pessoas que ainda chamariam os EUA de país de primeiro mundo se levassem em conta seu sistema de saúde, seus métodos de policiamento e o estado de sua democracia”, diz, ao acrescentar que Hollywood ajudou a espalhar mitos americanos pelo mundo inteiro. “Essa não é uma história horrível da desintegração do sonho americano. É uma história maravilhosa da máquina de propaganda se desintegrando e as verdadeiras histórias das dificuldades do povo aparecendo.”
Dele Olojede, jornalista vencedor do prêmio Pulitzer, que divide seu tempo entre a África do Sul e os EUA, concorda que a morte de George Floyd representa aquilo que é apenas a mais nova mácula na imagem da América. “O que você vê são os EUA totalmente humilhados e com a reputação aos pedaços”, afirma. “Muita gente fora dos EUA – e talvez dentro – começa a pensar que talvez o império tenha acabado. Acho que a covid fez isso”, acrescenta ele, referindo-se à resposta irregular do país à pandemia. “De repente, todo mundo sabe que o rei está nu.”
Mas Olojede, que é nigeriano, afirma que os EUA continuam exercendo poder de atração irresistível sobre a imaginação do mundo. “O motivo de terem sofrido esse golpe terrível em sua reputação é que eles se colocam num nível mais elevado, no qual o mundo os coloca também”, diz ele, acrescentando que os EUA estão sempre tentando corrigir o rumo e recapturar os ideais expressos nos documentos de sua fundação.
“O mundo não está protestando por Xi Jinping estar prendendo 1 milhão de uigures”, diz ele sobre os campos de reeducação surgidos no oeste da China em 2017. “Ninguém responsabiliza a China por esse tipo de comportamento.”
Ai Weiwei, artista e dissidente chinês que hoje vive na Alemanha, vem usando sua arte para chamar atenção para as brutalidades do Estado – de crianças chinesas amontoadas em condições desumanas em salas de aula horríveis, a migrantes africanos e sírios deixados à deriva no Mediterrâneo. Ele apoia o movimento de justiça social para os negros, mas afirma que políticas de identidade – sejam elas em torno dos direitos das mulheres ou dos afro-americanos – podem ser muito restritas.
“A vida de um homem lhe foi violentamente tirada, mas naquele mesmo dia – e em todos os dias – refugiados perdem suas vidas no mar. Ninguém os salva, e alguns até mesmo os empurram para a água”, diz. “No Ocidente, há pouca simpatia aos apelos daqueles que estão na Ásia. Pode ser porque o Ocidente não vê a vida dos asiáticos como importante”, acrescenta.
“Mais de 150 tibetanos, um dos grupos mais vulneráveis e violentamente oprimidos, já se autoimolaram em protestos contra a China, mas quem se importa? Não se trata apenas de brutalidade policial, ou se as vidas negras importam, ou #MeToo. Não podemos dividir isso em facções com mágoas separadas. Devemos ter solidariedade uns com os outros e reconhecer que quando direitos de um grupo são atacados, isso afeta todos nós.”
A indiana Aparna Gopalan, que é professora-bolsista de Harvard, critica conterrâneos por sinalizarem virtude ao usar #BlackLivesMatter como um acessório de moda. Ela alerta que eles não devem usar a hashtag se não estiverem preparadas para enfrentar a própria discriminação violenta que sofrem na Índia, onde são comuns mortes causadas por policiais, conhecidas eufemisticamente como “encontros”, e os dalits, casta de indianos com a pele mais escura outrora conhecidos como “intocáveis”, são mortos com frequência.
Os indianos são rápidos em criticar os EUA por seu preconceito racial, mas Gopalan diz que eles deveriam olhar para o seu próprio e majoritário nacionalismo hindu. Ela destaca a violência cometida contra muçulmanos como Faizan, um jovem de 23 anos que em fevereiro foi surrado violentamente pela polícia e forçado a cantar o hino nacional – incidente que levou à sua morte e que acabou sendo capturado em vídeo. “Para Faizan e muitos outros muçulmanos assassinados, não houve protestos, nenhuma prisão, nenhuma acusação, nenhuma demissão e nenhuma indignação”, lembra.
Eddin Khoo, escritor e historiador de origem indo-chinesa, há muito defende a cultura e os direitos das minorias na Malásia, onde nasceu. Assim como Aparna Gopalan e Ai Weiwei, ele está ciente de uma apropriação que vê como um discurso tacanha da política de identidade os EUA, onde, segundo ele, as experiências e aspirações de outras comunidades marginalizadas são sempre desconsideradas.
“Olho para o movimento dos direitos civis, que foi uma grande inspiração para o mundo todo, e acho a retórica de hoje deprimente. É claro que coisas como os parâmetros raciais e a brutalidade policial precisem ser enfrentadas. Mas em vez de Muhammad Ali, que era divertido, bonito e articulado, ou das longas cartas escritas por Martin Luther King na prisão, temos slogans de redes sociais.”
Khoo teme que os pontos de vistas das outras pessoas sejam pisoteados e as experiências das comunidades ou nacionalidades oprimidas sejam vistas a partir de um prisma puramente americano. “Eles querem derrubar a estátua de [Mahatma] Gandhi”, diz sobre os clamores na África e em outros países, pela remoção de estátuas do herói da libertação da Índia, por causa das observações pejorativas que ele fez sobre negros. “Isso é uma loucura total. O problema com uma figura como Gandhi é que ele foi transformado em santo. Portanto, quando ele é humanizado, torna-se um criminoso.”
Khoo diz que a cultura fica mais pobre quando livros como “Huckleberry Finn” e “O sol é para todos”, ambos amplamente reconhecidos como antirracistas, são retirados do currículo escolar por conterem personagens que usam linguagem racista.
A Malásia, diz, tem centenas de anos de atitudes progressistas em relação à sexualidade, incluindo a bissexualidade e as pessoas transgêneras. Mesmo assim, em vez de aprender com o passado, os malaios e outros povos do sudeste da Ásia se inspiram nos EUA. “Essa é a minha grande bronca com a política de identidade. Você começa a defender suas posições e há pouco questionamento intelectual.”
No Brasil, cuja economia agrícola foi construída sobre a escravidão de africanos, Luiz Felipe Alencastro, historiador e membro da Comissão Arns de Direitos Humanos, diz que a experiência de brutalidade policial dos EUA tem uma repercussão mais direta no país. “Toda vez que alguém é morto nas favelas, há manifestações, mas a polícia é muito violenta [nessas comunidades]”, afirma.
Após o assassinato de Floyd, pessoas marcharam em uma dezena de cidades para protestar contra atos recentes de brutalidade policial num país cujo presidente, Jair Bolsonaro, fez uma campanha para dar imunidade à policia pela morte de “baratas” criminosas.
Embora os brasileiros de origem africana representem uma grande parcela da população do país – que importou 4 milhões de escravos africanos, cerca de dez vezes o número embarcado para os EUA -, assim como seus pares americanos, eles também se encontram em desvantagem social e econômica. Alencastro diz que os brasileiros foram inspirados pela luta dos afro-americanos e conquistaram certas vitórias, como as cotas em universidades, que também foram concedidas à população indígena, bem menor. “Nem mesmo Bolsonaro pode tirar isso.”
Mais uma vez a história é diferente na Nigéria, onde Barrett – o romancista hoje radicado em Amsterdã – cresceu em grande parte alheio ao preconceito racial, algo com o qual ele se deparou pela primeira vez aos 32 anos, quando descobriu as origens jamaicanas do pai. Ele conta que os jamaicanos de pele mais clara comentavam continuamente sua pela escura. “As pessoas diziam: ‘Não sabia que eu era negro até que estive em um país branco”, afirma.
De volta à Nigéria, ele começou a explorar a natureza do preconceito racial em seu romance “Blackass”, em que o protagonista, numa metamorfose kafkiana, acorda certo dia e descobre que virou branco. Embora continue sendo a mesma pessoa, a vida subitamente toma um rumo diferente, com suas perspectivas românticas e de trabalho melhorando bastante.
O protagonista começa a se imaginar superior. Numa paródia sobre o tratamentos de branqueamento de pele usados por milhões de pessoas na África e outros países, ele chega até mesmo a branquear as nádegas – que inexplicavelmente continuaram negras -, por elas serem reveladoras.
Barrett diz que o racismo é um fenômeno complexo e bastante enraizado. Ele aponta para nigerianos instruídos que ridicularizam as gírias dos afro-americanos e uma minoria de jamaicanos que criticam os americanos negros.
“Esses africanos não teriam ingressado em universidades como Harvard e Yale e se tornado doutores, se não tivessem lutado”, diz Barret. “A verdade é que se é possível para um jamaicano ou nigeriano ir para os EUA e levantar a cabeça é porque os negros americanos vêm lutando há 400 anos.”
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