Epidemia ameaça iniciar uma guerra fria entre Washington e Pequim

Acusações de ambas as partes e sentimento nacionalista em alta elevam o risco para as relações entre as superpotências. Uma investigação internacional independente sobre a epidemia, hoje improvável, poderia acalmar os ânimos 

Os historiadores do futuro poderão registrar que a pandemia da covid-19 marcou o início de uma nova guerra fria entre China e EUA. Mesmo antes do aparecimento do coronavírus, as tensões entre Washington e Pequim estavam em alta. A China tinha desafiado o poder americano no Pacífico, ao construir uma rede de bases militares no Mar do Sul da China. Nos EUA, o governo Trump tinha começado uma guerra comercial. 

Agora, num momento em que a pandemia destrói a economia global, com mais de 25% dos casos fatais do mundo nos EUA, Donald Trump está atacando a China cada vez mais. O presidente endossou a ideia de que o coronavírus teve origem no Instituto de Virologia de Wuhan. Ele também especulou que o vírus poderia ter sido deliberadamente fabricado, uma ideia que seus próprios órgãos de inteligência repudiaram explicitamente. Foi divulgado que a Casa Branca estaria ainda estudando tentar anular a doutrina jurídica da “imunidade soberana”, que protege a China de ser processada por danos na Justiça americana. 

A China também contribuiu fortemente para a escalada das tensões. Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Zhao Lijian, lançou a ideia, desprovida de provas, de que o coronavírus poderia ter se originado nos EUA. Pequim também reagiu com agressões despropositadas a apelos pela realização de uma investigação internacional sobre a epidemia, que se tornou uma catástrofe global. Quando o premiê australiano, Scott Morrison, defendeu essa apuração, o embaixador chinês na Austrália levantou a ideia de que os consumidores de seu país poderiam boicotar produtos australianos, como retaliação. 

Autoridades chinesas parecem estar sendo orientadas a tentar ampliar o seu regime de censura da mídia estrangeira para os governos estrangeiros, ao policiar o que esses podem ou não dizer e ao ameaçar com medidas retaliatórias os que não obedecerem. 

O embaixador da China na França atacou a “malevolência” da mídia francesa e vociferou que as pessoas do Ocidente estão perdendo a fé na democracia. Gente abertamente nacionalista – como Zhao, o porta-voz da chancelaria chinesa – tem sido recompensada com promoções. Mas esses esforços são contraproducentes e acabam fomentando o sentimento antichinês que buscam reprimir. 

Se Pequim adotasse uma abordagem mais sutil para proteger a imagem da China, aceitaria a investigação internacional sobre as origens do vírus. Essa investigação – se ficar a cargo de cientistas respeitados do mundo inteiro, inclusive da China e dos EUA – contribuiria para neutralizar parte das violentas, e frequentemente contraditórias, teorias de conspiração que circulam nos dois países. Sobretudo, um inquérito independente daria lições valiosas sobre como evitar a próxima pandemia. 

Naturalmente, é muito pouco provável que Pequim aceite uma investigação desse tipo. Concordar em permitir que estrangeiros investiguem o que ocorreu na China seria retratado como uma humilhação pelos nacionalistas. O governo chinês, além disso, é implacável em proteger a imagem tanto do Partido Comunista quanto do presidente Xi Jinping. Um relato franco sobre os estágios iniciais da pandemia – e da intimidação a médicos que tentaram disparar o alarme – seria um constrangimento para o partido. Poderia também ser verdadeira a hipótese de que a China teria outros segredos danosos a esconder. 

A China também tem motivos legítimos para duvidar da boa fé de Trump, que sistematicamente se envolveu em teorias da conspiração e compartilhou “fake news”, apesar de dizer condenar essa prática. Esse comportamento tende a se agravar ainda mais com a aproximação da eleição presidencial de novembro nos EUA. No entanto, se Pequim aceitar apelos por uma investigação internacional, não será Trump quem ditará as diretrizes da apuração. Outras partes, entre as quais a ONU e a União Europeia (a presidente da Comissão Europeia também defendeu uma investigação) poderiam contribuir para garantir a objetividade do processo. 

Estaria eu prevendo a realização de uma sindicância desse gênero? Na verdade, não. Mas, na ausência de uma investigação independente, a troca de acusações mútuas entre EUA e China tende a se acirrar e a ficar mais perigosa. 

Mesmo antes da pandemia, havia uma forte corrente de opinião para que o Ocidente endurecesse sua linha com a China em uma série de questões, de Taiwan e Hong Kong até os investimentos em setores estratégicos. Mas o risco agora é o de que uma reinicialização equilibrada e íntegra das relações com a China resvale para um terreno mais perigoso. 

Existe um inegável componente de xenofobia em parte da onda de agressão à China que ocorre no Ocidente, que levou a uma enxurrada de ataques verbais e físicos a asiático-americanos nos EUA. Destacados políticos americanos, como o senador republicano Tom Cotton, estão em campanha para impedir que estudantes chineses se matriculem em cursos científicos, como de inteligência artificial e de computação quântica, nas universidades americanas. Existem até alguns de mais sangue mais quente em Washington que defendem que os EUA repudiem dívidas contraídas com a China. 

Já na China, os contornos nacionalista dados ao currículo escolar 30 anos atrás, após o massacre da Praça da Paz Celestial, criaram uma geração que se irrita muito facilmente, pronta a levar a reagir a supostas desfeitas vindas de estrangeiros e ansiosa por dar demonstrações do poder chinês. Esses sentimentos são alimentados por um governo que quer desviar a insatisfação dirigida ao próprio Partido Comunista. 

No pior dos casos, todas essas emoções furiosas de ambos os lados levarão não apenas a uma guerra fria, como também a uma guerra quente, um conflito de verdade. Tanto os EUA quanto a China precisam se distanciar desse caminho perigoso. O primeiro passo para isso seria aprovar a realização de uma investigação internacional independente sobre as origens da covid-19. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/05/05/epidemia-ameaca-iniciar-uma-guerra-fria-entre-washington-e-pequim.ghtml

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