Como lidar com a China

Na semana passada, a China reduziu a democracia em Hong Kong. A imposição de um controle rígido do continente sobre o território não é apenas uma tragédia para os 7,5 milhões de pessoas que vivem lá, é também uma medida da determinação da China em não comprometer a forma como impõe sua vontade. Após o colapso da União Soviética, em 1991, os valores liberais cresceram em todo o mundo.

O desafio da China os sujeitará ao maior teste desde os primeiros dias da Guerra Fria. Além disso, como a economia de Hong Kong também mostra, a China está mais intimamente ligada ao Ocidente do que a Rússia comunista jamais esteve. Isso apresenta aos países democráticos uma questão crucial: qual a melhor maneira de garantir a prosperidade, reduzir o risco de guerra e proteger a liberdade conforme a China cresce?

Hong Kong desafia quem procura uma resposta simples. A China cortou a proporção de legisladores eleitos diretamente de 50% para 22% e exigirá que eles sejam avaliados por “patriotismo”. É o culminar de uma campanha para acabar com a liberdade no território.

Os líderes do movimento de protesto estão no exílio, na prisão ou intimidados por uma lei de segurança imposta a Hong Kong em 2020. A censura está aumentando e o Judiciário e os órgãos reguladores de Hong Kong enfrentarão pressão para mostrar sua lealdade. Em 12 de março, o grupo de democracias que compõem o G-7 condenou a repressão autocrática da China, que é uma violação das obrigações do tratado do país. Os diplomatas da China responderam com negativas bombásticas.

Você pode pensar que a morte do liberalismo no centro financeiro da Ásia, que hospeda US$ 10 trilhões em investimentos internacionais, provocaria pânico, fuga de capital e um êxodo de negócios. Em vez disso, Hong Kong está passando por um boom financeiro. As ofertas de ações das principais empresas da China dispararam no mercado. As empresas ocidentais estão no meio disso: os principais subscritores são Morgan Stanley e Goldman Sachs. No ano passado, o valor dos pagamentos em dólares americanos compensados em Hong Kong, um centro para a moeda de reserva global, atingiu um recorde de US$ 11 trilhões.

O mesmo padrão de opressão política e efervescência comercial pode ser encontrado no continente. Em 2020, a China violou direitos humanos na região de Xinjiang, travou uma guerra cibernética, ameaçou seus vizinhos e intensificou o culto à personalidade em torno do presidente Xi Jinping. Outro desligamento daqueles que discordam do governo está em andamento. Mas quando as multinacionais falam com os acionistas a respeito da China, passam por cima dessa realidade brutal: “Muito feliz”, diz Siemens; “Fenomenal”, avalia a Apple; e “Notável”, diz Starbucks. 

A China continental atraiu US$ 163 bilhões em novos investimentos multinacionais em 2020, mais do que qualquer outro país. Ela está abrindo os mercados de capitais do continente para estrangeiros, que investiram US$ 900 bilhões, em uma transição histórica para as finanças globais.

Além disso, a atração que a China exerce não é mais apenas uma questão de tamanho – embora, com 18% do PIB mundial, isso também faça diferença. O país também é onde as empresas descobrem tendências e inovações de consumo. Cada vez mais, é lá onde os preços das commodities e o custo de capital são definidos e o país está se tornando uma fonte de regulamentações.

As empresas estão apostando que, em Hong Kong e no continente, o governo violento da China é capaz de autocontenção na esfera comercial, proporcionando segurança contratual, apesar da falta de tribunais totalmente independentes e de liberdade de expressão. Embora o magnata mais conhecido da China, Jack Ma, tenha caído em desgraça política, as participações de investidores estrangeiros em seu império ainda valem mais de US$ 500 bilhões.

Tudo isso é uma crítica à política ocidental da China nas últimas décadas. Quando os líderes ocidentais deram as boas-vindas à China no sistema comercial mundial em 2001, muitos deles acreditaram que ela se tornaria automaticamente mais democrática à medida que enriquecesse. Quando isso não aconteceu, o governo Trump tentou coerção, tarifas e sanções. Essas também fracassaram – e não apenas em Hong Kong.

Os EUA lideraram uma campanha de três anos contra a Huawei, empresa que acusa de espionagem. Dos 170 países que usam seus produtos, apenas uma dúzia os baniram. Enquanto isso, o número de empresas chinesas de tecnologia com valor superior a US$ 50 bilhões aumentou de 7 para 15.

Uma resposta seria o Ocidente fortalecer suas estratégias buscando um rompimento total com a China na tentativa de isolá-la e forçá-la a mudar de rumo. O custo disso seria alto. A participação da China no comércio mundial é três vezes maior que a da União Soviética em 1959. Os preços subiriam à medida que os consumidores ocidentais fossem cortados das fábricas multinacionais.

A China representa 22% das exportações globais de manufaturados. Os polos ocidentais que dependem da China enfrentariam um choque: tecnologia nos EUA, carros na Alemanha, bancos no Reino Unido, bens de luxo na França e mineração na Austrália. Proibir a China de usar o dólar hoje poderia desencadear uma crise financeira global.

Tal preço poderia valer a pena pagar se houvesse possibilidade de um embargo ter sucesso. Mas há muitas razões para pensar que o Ocidente não pode punir o Partido Comunista Chinês fora do poder. No curto prazo, se forçados a tomar partido, muitos países podem escolher a China em vez do Ocidente. Afinal, a China é o maior parceiro comercial de 64 países, contra apenas 38 dos EUA.

Em vez de isolar a China, os EUA e seus aliados podem acabar se isolando. No longo prazo, ao contrário da União Soviética encharcada de petróleo, a China é grande, diversa e inovadora o suficiente para se adaptar à pressão externa. Ela está testando uma moeda digital, que pode em algum momento rivalizar com o dólar como forma de liquidar transações. Isso tem como objetivo tornar o país autossuficiente em semicondutores.

Pelo menos um embargo incentivaria a China a proteger os direitos humanos, dirão alguns. Mas o isolamento tende a fortalecer o controle de governos autocráticos. Separados do contato comercial, intelectual e cultural com o Ocidente, os chineses comuns serão ainda mais privados de ideias e informações externas.

O contato diário de 1 milhão de empresas com investimentos estrangeiros na China com seus clientes e funcionários e de 40 mil empresas chinesas no exterior com o mundo é um canal que até mesmo os censores chineses têm dificuldades para conter. Estudantes e turistas participam de milhões de reuniões em seu cotidiano que não são intermediadas pelo Big Brother.

O envolvimento com a China é o único caminho sensato, mas como isso evita o processo de uma conciliação? Esse é o desafio enfrentado pelo governo Joe Biden, que realizou uma reunião de cúpula com a China enquanto esta edição ia para a gráfica. Isso está no centro de análises estratégicas como a que o Reino Unido acaba de divulgar.

Tudo começa com o fortalecimento das defesas do Ocidente. As instituições e cadeias de suprimentos devem ser protegidas contra a interferência do Estado chinês, incluindo universidades, a nuvem e os sistemas de energia. A frágil infraestrutura liderada pelos EUA por trás da globalização – tratados, redes de pagamentos, padrões de tecnologia – deve ser modernizada para dar aos países uma alternativa ao sistema concorrente que a China está montando. Para manter a paz, o custo da agressão militar para a China deve ser aumentado, fortalecendo coalizões como o “Quad” com Índia, Japão e Austrália, e reforçando a força militar de Taiwan.

Maior resiliência permite abertura e uma posição rígida em relação aos direitos humanos. Ao articular uma visão alternativa ao totalitarismo, os governos liberais podem ajudar a sustentar o entusiasmo de sociedades abertas em todos os lugares, em um confronto que, se não acabar em uma guerra trágica, durará décadas. 

É fundamental mostrar que falar de valores universais e direitos humanos é mais do que uma tática cínica para preservar a hegemonia ocidental e conter o crescimento da China. Isso significa empresas agindo contra coisas extremamente nocivas como, por exemplo, excluindo o trabalho forçado de suas cadeias de suprimentos. Considerando que a ausência de moralidade ocidental apenas tornaria o nacionalismo chinês mais ameaçador, a defesa dos direitos humanos sustentada por muitos anos pode encorajar o povo da China a exigir as mesmas liberdades para si mesmo.

Os governantes da China acreditam ter encontrado uma maneira de casar autocracia com tecnocracia, opacidade com abertura e brutalidade com previsibilidade comercial. Após a reforma do sistema eleitoral de Hong Kong, as sociedades democráticas deveriam estar mais conscientes do que nunca do desafio que isso representa. Elas agora precisam se reunir para uma resposta em conjunto – e preparar suas defesas para a longa luta pela frente.

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,como-lidar-com-a-china,70003659370

Comentários estão desabilitados para essa publicação