Em dezembro de 2020, para promover um KitKat “envelhecido em barril de uísque”, a fabricante suíça de chocolates Nestlé lançou uma campanha publicitária on-line no Japão.
Suas três camadas de wafer foram recobertas com chocolate de “grãos de cacau raros”, envelhecidos por 180 dias em barris de uísque da ilha de Islay, a “terra sagrada” da bebida na Escócia, segundo o texto do marketing japonês.
Aparentemente, isso dava à barra “um refinado aroma de uísque” e evocava “uma sensação calma e relaxada”. Parece estranho? Ou sensacional? Uma mostra da criatividade do pâtissier Yasumasa Takagi, que criou a receita? Ou apenas um dos estratagemas de marketing das empresas de bens de consumo para melhorar margens de lucro? Possivelmente, todas as opções acima são verdadeiras.
Há, no entanto, outra maneira de interpretar esse lançamento: como um símbolo da natureza paradoxal da globalização de hoje. Vivemos em uma era marcada por níveis antes inimagináveis de interconexão global trazida, em parte, pela digitalização.
Esse, afinal, é o motivo pelo qual um chocolate suíço feito de cacau envelhecido em barris de uísque escocês pode ser propagandeado com tanta naturalidade para consumidores japoneses – e também chegar aos meus ouvidos, uma jornalista inglesa morando em Nova York.
Por outro lado, se as plataformas digitais, os navios de carga e os aviões criam conexões (e contágios), há também reações contrárias à globalização, alimentadas por mazelas econômicas, tensões geopolíticas, populismo e insegurança diante das rápidas mudanças tecnológicas.
Muitas comunidades têm tentado definir suas características adotando diferenciadores culturais, seja uma bandeira, uma língua, uma roupa nacional ou um passaporte. A comida pode ser reflexo disso: cachorros quentes, digamos, parecem “americanos”; o sushi, “japonês”. Mas a grande beleza revelada pelo que bebemos ou comemos é que isso sinaliza uma verdade muitas vezes negligenciada: os rótulos nacionais podem até ser muito fortes, mas raramente são tão bem definidos como as pessoas pensam. Na verdade, o que comemos mostra que vivemos num mundo em que as identidades podem ser fluídas e ambíguas.
No século 20, alguns cientistas sociais receavam que o mundo estivesse se dirigindo a uma “coca-colonização”: em que marcas como a Coca-Cola seriam dominantes, trucidando rivais locais, em uma manifestação da força política e empresarial do Ocidente.
O que os observadores perceberam, porém, foi que esse estereótipo não captura nem de longe o que a globalização realmente faz. Sim, os memes e objetos culturais se disseminam: garrafas de Coca-Cola podem ser encontradas por todos os lugares. Os significados, entretanto, se modificam quando atravessam fronteiras.
“Muitas vezes, significados e usos da Coca-Cola muito diferentes dos imaginados por seu fabricante são atribuídos dentro de culturas em particular”, escreveu o antropólogo David Howes.
Além disso, tendências culturais não andam numa só direção. Como mostram o sushi com abacate, da Califórnia elas ficam à deriva entre países e culturas, criando novas fusões o tempo todo. Em outras palavras, quando você olha para um KitKat envelhecido em barris de uísque, não está olhando apenas para uma barra de chocolate.
As versões passadas de KitKats dão pistas sobre seu presente globalizado. Em 1862, um patriarca quaker chamado Henry Rowntree comprou uma fábrica de chocolate em York, norte da Inglaterra. Ele a mudou para uma antiga fundição de ferro industrial e construiu um negócio familiar de doces com seu irmão Joseph. Posteriormente, eles contrataram um confeiteiro francês para criar receitas.
Nos anos 30, a empresa lançou o wafer recoberto de chocolate que conhecemos hoje como KitKat, depois de um funcionário sugerir uma guloseima que pudesse ser levada ao trabalho no bolso.
A austeridade dos tempos de guerra forçou mudanças na receita e na marca, mas quando a vida voltou ao normal, a popularidade do KitKat decolou, sob o slogan “A maior pequena refeição da Grã-Bretanha”. A Rowntree’s começou a exportar o chocolate a ex-colônias britânicas. O slogan, criado no fim da década de 50, dura até hoje: “Have a break, have a KitKat”.
Quando o KitKat chegou ao Japão nos anos 70, foi vendido como um doce exótico britânico, para consumidores que começavam a tomar gosto pelas viagens ao exterior. Os anúncios no Japão mostravam “britânicos em cenários caracteristicamente britânicos desfrutando de uma pausa para um KitKat entre atividades cheias de ação”, disse Philip Sugai, professor de administração de empresas no Japão, em estudo de caso. “A mensagem girava em torno de como os japoneses podiam gozar a vida dentro do contexto britânico.”
Apesar de respaldada pela força de marketing da multinacional Nestlé, que comprou a Rowntree’s em 1988, o KitKat encontrou dificuldade para concorrer com doces de marcas locais, como a Glico.
“O KitKat era visto como um doce estrangeiro e parecia que nunca se tornaria muito popular”, diz Ross Rowbury, ex-presidente da agência de relações públicas Eldeman Japan.
Na virada do milênio, executivos no escritório regional da Nestlé, em Kobe, no Japão, até se perguntavam se a marca KitKat teria futuro no Japão. A Nestlé pensava que a melhor forma de impulsionar as vendas eram os estudantes.
As pesquisas da empresa, contudo, revelaram que os adolescentes japoneses não gostavam do slogan “Have a break”. Eles estavam tão estressados com o “juken” – provas seletivas de alta pressão, importantíssimas para seu futuro – que a pausa desejada era um longo descanso, não um mero chocolate.
Então, aconteceu uma virada que nenhum executivo ocidental poderia ter previsto. No início dos anos 2000, Masafumi Ishibashi, um gerente local da Nestlé, e seu chefe Kohzoh Takaoka ouviram que as vendas de KitKats na ilha de Kyushu, sul do Japão, aumentavam entre dezembro e fevereiro. Surgira uma tendência entre os adolescentes: os estudantes haviam notado que “KitKat” soava parecido à palavra japonesa “kitto katsu” (“você superará”) e passaram a presentear-se com a barra, como símbolo de boa sorte para superar as provações do juken.
A equipe de Kobe não ousou substituir o “Have a break” pelo “Kitto Katsu”, ciente de que os chefes na Suíça desejavam manter coerência entre as marcas globais. Mas Takaoka, Ishibashi e o resto da equipe decidiram tentar algumas táticas sutis para aproveitar a nova mania estudantil. Eles colocaram a frase “Kitto sakura saku yo!” (algo como “desejos se realizam!”) em seus anúncios japoneses e pediram a hotéis próximos aos locais das provas para distribuir KitKats com esse slogan em um cartão.
A escolha das palavras foi inteligente. Literalmente, a frase se traduz como “a flor da cerejeira desabrochará”. “Em razão da posição reverenciada que a temporada de florada das cerejeiras tem no Japão, o desabrochar das cerejeiras é relacionado à abundância e sucesso”, escreveu Sugai em seu estudo de caso.
Ishibashi conta como foi: “Não contamos exatamente a Vevey [sede da Nestlé], porque sabíamos que soaria muito estranho. Queríamos começar silenciosamente e ver se funcionava.”
Funcionou. As vendas de KitKats dispararam entre estudantes no Japão. Os adolescentes redefiniram a barra como um “omamori”, um símbolo de boa sorte vendido em templos e santuários. Em janeiro de 2003, 34% dos adolescentes japoneses disseram a pesquisadores que o KitKat era seu segundo amuleto favorito, atrás apenas dos omamoris abençoados por sacerdotes xintoístas genuínos.
Depois, a equipe japonesa contou a seus chefes em Vevey o que estava ocorrendo. Os executivos na Suíça permitiram que a equipe continuasse com os experimentos culturais. Em Kobe, a embalagem do KitKat foi redesenhada para permitir que os estudantes escrevessem mensagens de boa sorte nela. Depois, o serviço postal japonês foi persuadido a aceitá-la como um envelope pré-pago. “Ninguém havia feito isso antes com o sistema postal”, disse Sugai.
Quando Fukushima foi atingida por um tsunami em 2011, as pessoas enviavam caixas de KitKat aos trabalhadores encarregados da reconstrução, como uma forma de encorajamento. Posteriormente, caixas especiais até passaram a valer como passagens de trem, dentro de um plano para incentivar o turismo a Fukushima.
A equipe da Nestlé em Kobe estendeu o experimento além do marketing. Enquanto para os consumidores no Reino Unido um KitKat ainda era uma barra de chocolate marrom, a equipe de Kobe criava em 2003 um KitKat cor de rosa, adicionando pó de morango. Depois, fizeram um com pó de matcha (chá verde).
Até hoje, já criaram mais de 300 sabores locais, incluindo de wasabi, molho de soja, saquê e até, em 2017, uma edição limitada com sabor de pastilha para a garganta, para aliviar a rouquidão dos torcedores japoneses de futebol na campanha das eliminatórias para a Copa do Mundo.
Algumas dessas inovações incluíram sabores não japoneses como novidades. A maioria, no entanto, expressava um senso de identidade japonesa por meio da comida. Ao longo do tempo, foram incorporados sabores com identidades regionais, como o de batata doce roxa, de Okinawa, e o de queijo, de Hokkaido. Hoje, eles são vendidos como souvenires (omiyage) para turistas nas estações de trem japonesas.
Para o gosto suíço ou britânico, esses sabores podem parecer esquisitos. Muitas vezes, turistas estrangeiros os compram como souvenires do contraste de sua cultura com a japonesa. Esquisita ou não, a mania tornou a barra uma das marcas de chocolate mais vendidas no Japão.
A ascensão do KitKat foi tão impressionante que Ryoji Maki, um dos executivos em Kobe que havia lançado os ousados novos sabores, foi promovido a gerente-geral global de marcas da KitKat, em Vevey.
Então, veio o toque final: a Nestlé lançou o KitKat de matcha no Reino Unido, com boas vendas. Em termos estritos, não eram uma importação “made in Japan”: as barras eram produzidas na Alemanha. Ainda assim, o chocolate verde feito com chá não era algo que os consumidores britânicos teriam imaginado há 50 anos.
“O que esta história mostra é que você tem que pensar fora do convencional”, disse Maki a seus desconcertados colegas não japoneses em uma apresentação – mostrando fotos de estudantes japoneses segurando com força as barras de chocolate como se fossem omamoris durante as provas. “Você precisa ouvir os consumidores.” Ou, mais precisamente, precisa reconhecer que os gostos dos consumidores são mais criativos do que os executivos podem ser.
Será que os Rowntree teriam aprovado tudo isso? Gosto de pensar que sim. A Inglaterra vitoriana, afinal, foi outro período de globalização, quando tendências colidiram ao atravessar fronteiras, ainda que frequentemente sob circunstâncias desiguais. Como empreendedores, os Rowntree sabiam que o sucesso comercial depende de uma mente flexível para absorver ideias de todos os lados.
É aí que está o mais importante – não tanto nossas papilas gustativas, mas a forma como hoje vemos a nossa identidade. O século 21 é uma era fraturada, na qual políticos promovem nacionalismos de visão curta, traçam fronteiras entre “nós” e “eles” e expressam fidelidades culturais antagonistas.
O que a jornada do KitKat, assim como as de muitos outros alimentos, mostra é que rótulos também podem ser maleáveis, de uma forma positiva.
Não importa o que você ache dos KitKats envelhecidos em barris de uísque, todos podemos comemorar o fato de uma barra de chocolate ter virado verde e, ao longo desse caminho, se tornado anglo-suíça-escocesa-japonesa. Torçamos para que isso também possa servir de metáfora para a política. (Tradução de Sabino Ahumada)