China lucra com falta de equipamento médico

Quando a fabricante chinesa de autopeças Kanou Technology, do sul do país, tentou retomar a produção depois de ter ficado fechada durante a quarentena pelo coronavírus, uma de suas linhas de maquinário não funcionava. 

Uma rata havia tido uma ninhada na máquina e sua jovem família havia roído o cabeamento interno. Quando a empresa expulsou os ratos e resolveu outros problemas, como lacunas de fornecedores e a exigência das autoridades locais de turnos na volta ao trabalho, o surto iniciado na China em janeiro já havia se tornado uma pandemia mundial. 

As encomendas para a indústria automotiva no exterior haviam se evaporado, o que obrigou a Kanou a seguir os passos de centenas de outras fábricas chinesas e diversificar-se com a produção de equipamentos médicos, uma das poucas áreas no mundo nas quais ainda havia demanda. 

“Corremos rápido”, disse Lä Hua, fundador e presidente da Kanou. “Levamos apenas duas semanas para tornar a ideia realidade. Agora, 30% de nossa receita vem de máquinas para máscaras faciais e não conseguimos acompanhar a demanda.” 

Com a pandemia assolando várias partes dos Estados Unidos, Europa e resto do mundo, a demanda internacional por Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e aparelhos médicos como respiradores artificiais e monitores médicos rapidamente superou a capacidade de produção da maioria dos países. 

Mesmo antes do surto do vírus, os fabricantes chineses de equipamentos médicos cresciam a passos rápidos. As exportações de equipamentos médicos do país mais do que dobraram em dez anos, chegando a US$ 28,7 bilhões em 2019. Para atender o aumento na demanda neste ano, os fabricantes chineses começaram a elevar a produção ainda mais, para ocupar o espaço deixado por líderes do setor, como Medtronic e GE, que enfrentavam gargalos produtivos. 

Dessa forma, novatos no setor, como a Kanou, se somaram a produtores chineses de equipamentos médicos já existentes. Os resultados foram variados, o que levou ao aumento das reclamações sobre produtos chineses com defeitos em alguns mercados, como a Europa. 

As vendas, no entanto, não foram impactadas. Segundo dados alfandegários, a China exportou 3,1 milhões de monitores médicos no primeiro trimestre, quase o quadruplo do que no mesmo período de 2019. 

“Nossos clientes estão comprando todo nosso estoque”, disse Cai Haixue, chefe de vendas internacionais na produtora de equipamentos médicos Zoncare. As encomendas para o exterior triplicaram em abril em comparação ao mesmo mês de 2019. “Eles estão em clima de desespero.” 

Com sede em Wuhan, onde se originou o surto de coronavírus, a Zoncare começou a receber no fim de fevereiro uma enxurrada de consultas de países pelo mundo, da Espanha à Arábia Saudita. A empresa começou a operar suas linhas de montagem durante 14 horas diárias e sextuplicou a produção semanal. 

Da mesma forma que muitas empresas chinesas da área, a Zoncare foi fundada por um ex-vendedor de equipamentos médicos, em 2005. Começou vendendo máquinas de eletrocardiograma, um produto relativamente simples com poucas dificuldades para a produção. 

Como a maioria dos grandes hospitais preferia marcas estrangeiras, mais consolidadas, a Zoncare, de início, comercializava aparelhos mais baratos para clínicas de bairro e hospitais rurais pela China. A empresa também aproveitou políticas industriais que davam preferência a fornecedores locais em licitações governamentais. “O apoio estatal nos ajuda a prosperar”, disse Cai. 

As vendas da Zoncare decolaram à medida que a China foi modernizando seu sistema básico de saúde. Isso permitiu às empresas investirem em pesquisa e desenvolvimento e entrar em segmentos mais lucrativos, como os monitores médicos e os sistemas de ultrassonografia. 

Engenheiros da Zoncare em Wuhan, onde estão localizadas várias universidades de alto nível, ganham cerca de 200 mil yuans (US$ 28.330) por ano, menos do que seus colegas em outros países no sul da Ásia. 

Os baixos salários permitem à empresa vender máquinas que proporcionam de 70% a 80% da funcionalidade das marcas ocidentais, mas cobrando cerca da metade do que os concorrentes dos EUA e Europa. 

“Nossos produtos podem não ser uma boa opção para unidades de terapia intensiva, que exigem alto nível de precisão”, disse Cai. “Mas somos bons o suficiente para atender salas de emergência onde as condições são menos rigorosas.” “Os hospitais não podem ficar sem aparelhos de baixo a médio padrão e as fábricas estrangeiras não são capazes de produzir um volume suficiente deles”. 

A maioria desses aparelhos feitos na China, no entanto, está pelo menos uma geração atrás dos modelos ocidentais novos e encontram dificuldade em reduzir a diferença, segundo Wang Lei, especialista em equipamentos médicos da Academia Chinesa de Ciências. 

 “Embora os fabricantes chineses estejam investindo pesadamente em pesquisa e desenvolvimento, as firmas americanas vêm fazendo o mesmo e saindo de um ponto de partida mais alto”, disse Wang. 

Cai disse que o foco da Zoncare é crescer “exponencialmente” e fortalecer a presença no exterior. Tanto ele quanto Lü, da Kanou, no entanto, admitem que os países ocidentais vão acelerar os esforços para passar a depender menos de equipamentos feitos na China, como resultado da pandemia. 

Essa tendência já era bem visível no ano passado, depois de as tarifas impostas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em sua guerra de dois anos contra a China terem convencido muitas empresas multinacionais de que estavam excessivamente dependentes da produção chinesa.

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/05/12/china-lucra-com-falta-de-equipamento-medico.ghtml

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