Yuan digital deve desafiar o poder global do dólar

Há anos os esforços da China para desenvolver uma moeda digital pareciam ser voltados apenas para uso interno. O lançamento de um “e-yuan”, ainda em fase de teste, ajudará a China a abolir o papel-moeda, ao mesmo tempo em que dará ao banco central um rígido controle sobre o dinheiro digital. 

Mas apareceu um fato novo no dia 16 de julho que agitou os mercados financeiros: Pequim disse que estava prospectando a possibilidade de realizar pagamentos transfronteiriços com o e-yuan. 

O yuan digital parece agora ser a mais recente de uma série de medidas – iniciadas há uma década – destinadas a internacionalizar a moeda chinesa e, em última análise, reduzir a hegemonia global do sistema de pagamentos em dólar. 

A Casa Branca, segundo notícias da imprensa, vê a nova moeda eletrônica chinesa como um possível esforço para minar o dólar. Ao mesmo tempo, o futuro do dólar como moeda dominante do sistema financeiro global está sendo posto em questão, com os EUA imprimindo dinheiro para custear programas de estímulo econômico. Outros países, temerosos com a possibilidade de que suas reservas em dólares se desvalorizem, poderão buscar alternativas – em especial a China, o maior detentor estrangeiro de reservas em dólar. 

A situação é estranhamente simétrica à que completa 50 anos neste mês, quando a atual era de sistema financeiro mundial foi criada pelo então presidente dos EUA, Richard Nixon. Em agosto de 1971, ele tirou os EUA do padrão ouro internacional e permitiu que o dólar se desvalorizasse. 

Atualmente, desponta uma nova era da economia global tão imprevisível quanto a última. 

A China intensificou seus esforços para internacionalizar o yuan, em parte a fim de limitar qualquer consequência para a sua economia das crescentes tensões com Washington. Além disso, Pequim está reagindo ao temor de que os EUA usem o dólar como arma, para impor sanções ao país. Washington já impôs sanções a companhias chinesas como a Huawei Technologies, bem como a autoridades chinesas envolvidas com a repressão em Hong Kong e Xinjiang. 

“A corrida da China para desenvolver uma moeda digital tem de ser vista no contexto dos esforços de Pequim de arrebatar influência e poder globais das mãos dos EUA”, disse Diana Choyleva, da consultoria Enodo Economics. O yuan digital “é peça-chave de uma alternativa à ordem assentada sobre o dólar que Pequim está construindo”. 

O sucesso do yuan digital depende de sua adoção por outros países, disse Choyleva. “Ao facilitar e baratear os pagamentos transfronteiriços, o embrionário sistema de yuan pode exercer atração, especialmente nos mercados emergentes, diante do acesso oneroso a pagamentos globais em dólar e também pelo desejo de reduzir a dependência do dólar por motivos geoestratégicos.” 

O fim do sistema monetário de Bretton Woods em 1971 abriu o caminho para o advento de um sistema de taxas de câmbio unicamente regido pelas forças do mercado. As moedas não são atreladas a outras nem lastreadas pelo ouro. Não há nada de tangível lastreando as moedas, somente as condições econômicas internas e a confiança nas políticas de um país. 

Esse sistema persiste nos dias de hoje. O dólar é a moeda dominante, devido à dependência global da economia americana, à confiança em suas instituições e ao seu papel como a única superpotência global. O dólar deu aos EUA um enorme poder econômico e político. 

Mas agora, dizem os especialistas, a economia global enfrenta mais um ponto de inflexão. Uma inflação significativa ganha corpo, os déficits público e comercial dos EUA estão em disparada, e uma alta do juro poderá levar o dólar para o terreno da supervalorização. 

A crescente influência econômica da China, principalmente seus laços comerciais com vários países asiáticos e africanos, também poderão acelerar a aceitação do yuan como o principal rival do dólar, segundo investidores e economistas. 

O enfoque digital da China “deverá acelerar a ascensão do yuan ao cenário mundial”, disse Michael Hasenstab, diretor do Templeton Global Bond Fund. 

Um sistema de pagamentos digital transfronteiras permite concluir que a China está preparando o caminho para uma conversibilidade mais plena do yuan, o que aceleraria o uso da moeda em pagamentos em moeda estrangeira. 

“Continuaremos a promover a internacionalização do yuan para atender à economia real, com base em princípios de mercado”, disse o Banco do Povo da China (PBOC, o BC chinês) em 2020. 

A China vai facilitar o uso do yuan para os investidores externos comprarem bônus e ações chineses e promoverá o desenvolvimento de mercados de yuan no exterior, disse a instituição. O PBOC também prevê que o yuan desempenhará um papel maior na precificação do petróleo, do minério de ferro e de outras commodities, e no fechamento de transações. 

Os avanços têm sido lentos em relação a ascensão da economia chinesa. Embora a China responda por 20% da produção econômica global, o uso de sua moeda tem sido limitado pela falta de ativos nos quais investir e pela ausência de conversibilidade plena, devido à determinação de Pequim de conservar seu controle sobre o capital. 

Dez anos atrás era quase nula a parcela do comércio externo chinês paga em yuans, mas em 2019 ela chegou a 13,4% no caso de bens, e a 23,8%, no de serviços, segundo o PBOC. Mas a participação do yuan nas reservas cambiais globais está num distante quinto lugar, com uma fatia de 2,5%, apesar dos avanços recentes, bem atrás do dólar, o euro, do iene e da libra. 

O dólar continua sendo o soberano incontestado do sistema financeiro mundial, respondendo por 59,5% das reservas globais no primeiro trimestre do ano, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). O yuan é empregado em 2,5% dos pagamentos transfronteiriços globais. Embora seja o maior percentual dos últimos cinco anos, está bem abaixo dos 40% do dólar, segundo a Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais (Swift). 

A última tentativa da China de internacionalizar sua moeda e desafiar o dólar terminou mal. Em 2015, após saídas de capital estimadas em US$ 1 trilhão, o país foi obrigado a desfazer seis anos de liberalização da conta de capital (de empréstimos e investimentos no balanço de pagamentos) e a apertar os controles mais uma vez. 

Esse esforço anterior incluía a base do mercado de bônus “dim sum” (bônus em yuan emitidos fora da China) e a expansão do projeto-piloto de pagamentos em yuan no comércio transfronteiriço. Pequim também inaugurou um mecanismo de propriedade de ações. As iniciativas desencadearam expectativas de conversibilidade plena, que acabaram frustradas. 

A situação está mudando: os ingressos de capital na China dispararam nos últimos anos, em parte devido à inclusão de ativos em yuan nos índices globais de ações e bônus que são acompanhados por trilhões de dólares em ativos. 

Em março, o FTSE Russel se tornou o mais recente provedor de índices a confirmar planos de incluir instrumentos de dívida mobiliária do governo chinês em seu índice de bônus global, iniciativa que atrairá US$ 150 bilhões ao ano, segundo estima o HSBC Holdings. 

O volume de bônus e ações denominados em yuans nas mãos de estrangeiros alcançou o recorde de 7,6 trilhões de yuans em junho, segundo dados do PBOC. 

A China também está abrindo seu mercado financeiro de US$ 50 trilhões, e atraindo bilhões em investimento de bancos como Goldman Sachs e JP Morgan Chase. 

Mas a base do atual esforço de internacionalização é o yuan digital. Os trabalhos em torno disso começaram em 2014. Em 2017, o PBOC estava trabalhando juntamente com instituições comerciais a fim de testar a moeda. A pesquisa e desenvolvimento do projeto e da função da moeda foram concluídos, disse o PBOC em julho. 

Desde o fim de 2019, o PBOC iniciou programas-piloto do e-CNY, como é chamado o yuan digital, em algumas regiões representativas. Os testes alcançaram 34,5 bilhões de yuans em valor das transações, e mais de 20,8 milhões de pessoas físicas abriram uma carteira virtual da moeda digital. 

A emissão e circulação do e-CNY (sigla do e-yuan) são iguais a alguns processos usados para o yuan físico. O e-CNY tem um valor que é transferido digitalmente, é respaldado por crédito soberano e considerado moeda corrente legal. 

“Com base em experiências de testes internos e na demanda internacional e pré- condicionado ao respeito mútuo à soberania e conformidade monetárias, o PBOC vai prospectar a possibilidade de instaurar programas de pagamentos transfronteiriços e trabalhará em cooperação com bancos centrais e autoridades monetárias relevantes para instaurar estruturas de câmbio”, disse o PBOC. 

O sucesso transfronteiriço dependerá da disposição de outros países de aderir às inovações financeiras da China. O yuan digital oferece vantagens que mercados emergentes, precariamente atendidos pelas estruturas atuais, deverão considerar atraentes. Nessas economias, um banco “correspondente” tem de ser empregado como intermediário de outro para facilitar as transferências. 

“O desenvolvimento do yuan digital pode no fim contribuir para o objetivo de longo prazo do PBOC de internacionalização de sua moeda”, disse Paul Mackel, do HSBC. “Se uma transferência ponto a ponto com melhor custo-benefício se tornar aceita de forma ampla em transações internacionais”, entidades não americanas e chinesas “poderão ser capazes de converter moedas diretamente, sem o envolvimento do dólar”. 

Simultaneamente, o comércio da China com países asiáticos e africanos disparou, o que permite um uso maior do yuan nas transações. Charles Gave, da consultoria Gavekal Research, chama isso de “nova ordem monetária da Ásia”. 

O uso internacional do yuan aumentou 24% em 2018 e 2019, para 19,67 trilhões de yuans, um recorde em termos de volume, segundo informou o PBOC no Relatório de Internacionalização de 2020. 

Gave disse que, embora o comércio entre os países asiáticos ainda se dê principalmente em dólares, já existe uma “infraestrutura paralela”. Velhos arranjos centrados no dólar podem ser descartados em questão de dias sem provocar um colapso no comércio regional pela falta de um meio de pagamento. Na crise financeira de 2008, os países asiáticos, que tinham vastas reservas em dólar, não conseguiram mobilizar seus ativos rapidamente e tiveram de recorrer a uma linha de liquidez de emergência de swap em dólares. 

Esse episódio foi seguido por estímulos monetários nos EUA que ameaçavam desvalorizar o dólar, o que levou Pequim a propor um sistema pelo qual os países pudessem cobrar por suas exportações nas próprias moedas. A ideia foi discutida como forma de reduzir a dependência do dólar e a volatilidade entre as moedas asiáticas, principalmente no que diz respeito ao yuan, e transformar o PBOC no banco de último recurso por meio de suas linhas de swap. Segundo Gave, os dois últimos pontos foram alcançados com taxas de câmbio estabilizadas e o crescimento do papel do PBOC na região. 

Nessa nova ordem, os países que integram o sistema buscam estabilizar suas taxas de câmbio em relação ao yuan, em vez de em relação ao dólar. Com isso a volatilidade das taxas cruzadas entre as moedas no sistema é baixa, assim como o custo de cobertura. 

As mudanças, segundo Gave, “isolam o comércio intrarregional asiático de uma futura crise do dólar americano ou do euro, e tornam outro colapso do comércio, como os de 1997-98 e de 2008, altamente improvável”. 

Sob este novo sistema, o credor de último recurso não seria mais o Federal Reserve (Fed, o BC americano) dos EUA nem o Fundo Monetário Internacional (FMI), mas o PBOC, via acordos de swap assinados com outros bancos centrais. 

Entre 2009 e 2020, o PBOC fechou acordos bilaterais de swap com 41 países. A maioria foi implementada de 2009 a 2016 e, em geral, eram válidos por períodos de três anos. Muitos desses acordos foram renovados repetidamente, e o número de acordos ativos chegou a um pico de 33 em 2016 e estava em 27 no fim de 2019. 

Apesar da queda no número de acordos ativos, a liquidez máxima que pode ser disponibilizada por meio deles tem se mantido estável, em uma média de 2,22 trilhões de yuans, segundo dados do PBOC. 

Em uma transação de swap, um banco central que busca obter liquidez em moeda estrangeira vende ao banco de origem um volume específico de sua moeda nacional em troca de moeda estrangeira pela taxa de câmbio do mercado. 

Dada a importância da China como fornecedora de bens, assim como fonte de investimentos e crédito para países em desenvolvimento, e seu esforço para internacionalizar o yuan, esses swaps satisfazem a China e seus parceiros. 

“Se o objetivo era abrir o caminho para a desdolarização do comércio entre os países asiáticos, então em grande medida isso foi alcançado”, disse Gave, sobre a infraestrutura paralela que permite aos países trocarem moedas. 

Enquanto Pequim avançava na internacionalização do yuan, o centro de compensação e pesquisa de moeda digital do PBOC criou em fevereiro uma joint- venture com a Swift, o sistema mundial para mensagens financeiras e pagamentos transfronteiriços. Este foi um dos primeiros sinais de que Pequim pretendia explorar a possibilidade de uso global de sua planejada moeda digital. 

A nova entidade, Finance Gateway Information Services, foi criada em Pequim em janeiro, exatamente quando surgiram temores de que os EUA poderiam excluir a China da plataforma Swift, em meio a tensões crescentes. 

O PBOC começou ainda a trabalhar com suas contrapartes em Hong Kong, Tailândia e Emirados Árabes Unidos, além do Banco de Compensações Internacionais (BIS), no uso de um registro digital de transações. O objetivo é usar as moedas digitais dos BCs para tornar os pagamentos internacionais mais simples e baratos. 

Nos EUA, o governo do presidente Joe Biden tem intensificado seu escrutínio sobre os planos da China para um yuan digital. Em abril, a agência Bloomberg informou que alguns em Washington temem que a moeda digital possa ser o início de uma aposta de longo prazo para derrubar o dólar como moeda de reserva dominante. 

Os temores não são infundados, pois as últimas medidas da China podem ser a maior tentativa já feita de ameaçar o status global do dólar, assim como do sistema monetário que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial. 

Analistas já consideram o dólar sobrevalorizado ante uma cesta de moedas, com as apostas de forte recuperação na maior economia do mundo impulsionando a demanda pelo dólar. 

“É importante cultivar uma base de investidores internamente e aprofundar os mercados de capitais na região, em especial desenvolver ainda mais os mercados de bônus em moeda local, para limitar a dependência de financiamento em dólares na região e, assim, reduzir as vulnerabilidades a choques externos”, diz um documento recente do Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB). Analistas também alertam que a diferença entre os valores teóricos e reais do dólar pode causar viradas súbitas, capaz de abalar a economia global e desestabilizar o mercado, podendo prejudicar a Ásia emergente. 

Certamente, o dólar provou ter resiliência e sobreviveu a muitos cenários catastróficos no passado. Muito poucos estão prontos para escrever um obituário para a hegemonia da moeda. 

Cinquenta anos atrás, o presidente Nixon e sua equipe tomaram algumas decisões difíceis que consagraram o status do dólar como reserva mundial. O atual presidente e seus sucessores enfrentarão um momento semelhante de ajuste de contas. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/08/25/yuan-digital-deve-desafiar-o-poder-global-do-dolar.ghtml

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