Em 14 de agosto, um dia antes de uma multidão de combatentes armados invadirem Cabul, em uma conta no Twitter de uma das revistas do grupo, foi postado um vídeo de seis soldados afegãos nervosos sentados em um caminhão cercado pelos militantes. Na postagem, o trecho de um texto dizia, em pashtun, uma das principais línguas do Afeganistão: “embora os mujahedin se comportem generosamente com esses soldados, as crianças da aldeia atiraram pedras contra eles, chamando-os de cachorros. É o que acontece em resposta às suas atrocidades”. No mesmo dia, um porta-voz do Taleban postou outra mensagem, desta vez em Inglês, prometendo que o grupo criará “um ambiente seguro” para todos os diplomatas, embaixadas e entidades sem fins lucrativos, tanto nacionais como internacionais. E concluiu o texto com uma bênção em árabe, “Inshallah”, se Deus quiser.
Há meses, nas redes sociais, o Taleban tem procurado projetar uma imagem de força e moderação, uma aura de previsibilidade dentro do Afeganistão, e um ar de legitimidade para o mundo exterior. Mas ao lado das mensagens de texto e aplicativos criptografados, eles têm visado diretamente os soldados do governo, retratando-os como mercenários e insistindo para que se entreguem ou enfrentarão consequências brutais. Ao mesmo tempo, tentam tranquilizar a comunidade internacional de que o Taleban hoje é mais esclarecido que o Taleban de outrora que realizava terríveis amputações e execuções em público num estádio de futebol em Cabul. À medida que acumulavam uma série de vitórias nas últimas semanas, eles também alardeavam seu respeito pelas mulheres e meninas, dentro da lei islâmica naturalmente. Eles mudaram? Bom, mudaram sua mensagem. É muito cedo para saber se agora simplesmente adotaram um marketing melhor.
Os americanos se perguntam como aproximadamente 70.000 soldados Taleban conseguiram demolir uma força de segurança governamental bem financiada e bem treinada pelos Estados Unidos de 300.000 homens, pelo menos no papel. A resposta não tem a ver com treinamento ou poder de fogo, mas corações e mentes. O Taleban entendeu o ditado conhecido de Sun Tzu, de que cada guerra é vencida ou perdida antes de ser combatida e que a vitória suprema é quebrar a resistência do inimigo sem luta. Foi o que fizeram.
Durante anos, nas redes sociais e em publicações análogas, o Taleban tem clamado que é o real herdeiro do Afeganistão, que seus combatentes são mártires, os americanos são “invasores” e que os soldados do governo são “mercenários” imorais dos estrangeiros. Seu tema primário que remonta aos anos 1990 é de que o Afeganistão é uma nação muçulmana ocupada por não-muçulmanos e que Alá abençoou sua luta pela libertação. Não há muita coisa que os Estados possam fazer no tocante a essas afirmações – são afegãos falando para afegãos. Eles travaram uma guerra moderna – uma insurgência local obsoleta combinada com uma estratégia de mídia de fogo rápido destinada a intimidar o inimigo – que os Estados Unidos não são muito bons em combater. À medida que o Taleban marchava pelo país convidando os soldados do governo a se renderem ou morrerem, dezenas de milhares de soldados obedeceram. A maioria nunca disparou um tiro.
O preocupante é que, por mais eficaz que seja a estratégia de mídia social do Taleban, ela ainda é terrivelmente grosseira. Lembre-se que eles começaram do zero. Quando o grupo governou o Afeganistão, proibiu o uso da Internet, sem falar da televisão e da música. Desde então, como estrategistas militares astutos, eles se adaptaram ao novo terreno. O ambiente de mídia no Afeganistão evoluiu desde os dias em que o país possuía apenas uma emissora de rádio. Hoje são mais de 100 estações de rádio e dezenas de canais de TV, 70% das pessoas têm acesso a um celular e um terço da população de 38 milhões pessoas acessa redes sociais. O Taleban compreende que a guerra de informação é a guerra moderna. Não tenta construir uma nova plataforma, mas se integrar no ambiente existente e dominá-lo.
Para esse fim eles extraíram uma página digital do manual do Estado Islâmico. Apesar de o Taleban ser menos sofisticado e menos prolífico do que era o EI nas redes sociais – mais como o Hamas e Hezbollah – o grupo aprendeu algumas lições básicas do grupo jihadista. A marca do EI era uma combinação de força e cordialidade – decapitações horríveis junto com imagens de combatentes em rodas gigantes ou oferecendo doces para as crianças. Vemos ecos dessa estranha mistura de comportamento amigável e de horror no Afeganistão. Na semana passada, circulou um vídeo nas redes sociais mostrando militantes Taleban armados dirigindo carrinhos bate-bate num parque de diversões com as crianças olhando. Agora que eles têm um país para governar, têm menos intenção de inspirar medo e sim mais confiança. E se de um lado o EI se considerava uma organização global, o Taleban está concentrado no local. E se preocupa mais com a Província de Helmand do que com a jihad internacional. Em 2019, segundo o Digital Forensic Research Lab, do Atlantic Council, o grupo criou mais de 60 contas no Twitter para corroer a disputa presidencial no Afeganistão. Para o Estado Islâmico as redes sociais eram uma ferramenta de recrutamento. Para o Taleban as redes têm por principal finalidade conquistar seu público doméstico – e não afastar sua audiência internacional.
O insight real dessa estratégia é revelado não pelo que fizeram, mas pelo que não fizeram. Não postaram imagens dos assassinatos que muitas pessoas acham que cometeram nos últimos seis meses. Não postaram fotos de mortes por represália ou aplicação severa da Sharia. Não querem companhias de mídia social para bani-los completamente; afinal em breve serão o governo oficial do Afeganistão. (Facebook e YouTube já baniram o grupo, embora o Taleban tenha encontrado meios para contornar essas restrições). E nem querem alarmar os doadores internacionais; mais de 70% do orçamento estatal do Afeganistão vem de governos ocidentais.
O que estão fazendo agora é algo familiar na história: tentam executar uma transição complicada de uma força rebelde para uma coalizão de governo. Porta-vozes do Taleban prometeram no Twitter que o grupo protegerá os tecnocratas e funcionários públicos. Voltem ao trabalho, afirmam. O Afeganistão precisa de vocês. E também vem colocando no Twitter imagens e vídeos de meninas na escola, mulheres indo para o trabalho. Um tuíte de um porta-voz do grupo mostra uma mulher de meia-idade usando uma burca, em Cabul, dizendo: “este sistema é muito melhor do que antes”.
Quando trabalhei no governo Obama, ajudei a criar uma entidade no Departamento de Estado chamada Global Engagement Center que monitora e responde ao aumento da desinformação em todo o mundo. Mas o Taleban, ao contrário dos russos, não está muito envolvido com desinformação e está mais interessado na autopromoção e na propaganda. Seus esforços até agora giram em torno de promover suas vitórias e escarnecer seus inimigos. O objetivo é mudar a narrativa.
No futuro, os Estados Unidos deverão reagir quando o Taleban, por exemplo, disser que não está maltratando as mulheres? A resposta é sim, se o Taleban retornar à sua opressão medieval das mulheres e pudermos documentar isso. Temos de continuar a respaldar os direitos humanos, como também o direito de as meninas irem à escola. Mas os Estados Unidos não devem se habituar, como fizemos algumas vezes com o EI, a debater os pontos mais precisos da teologia muçulmana ou se o Taleban está realmente realizando o desejo de Alá. Esta não é exatamente uma das nossas competências principais.
Por outro lado, o Taleban continuará a visar um público particular: as elites globais. Eles participam de conferências, visitam capitais, publicam artigos de opinião e realizam coletivas de imprensa. Um tuíte na semana passada de um porta-voz do Taleban mostrou um oficial respondendo a uma pergunta sobre liberdade de opinião no Afeganistão. Sua resposta foi: “Esta pergunta deve ser feita para aquelas pessoas que afirmam ser promotoras da liberdade de expressão”. A pergunta, disse ele, deve ser feita ao Facebook. O que teria alguns likes.
*Richard Stengel serviu como subsecretário de Estado do Presidente Obama para a diplomacia pública e assuntos públicos. Ele é ex-editor da revista Time e o autor de “Information Wars: How We Lost the Global Battle Against Disinformation and What We Can Do About It” (Guerra da Informação: Como Perdemos a Batalha Global contra a Desinformação e o que podemos fazer a esse respeito, em tradução livre).