Yuan digital deflagra corrida das moedas virtuais

A desconfiança sobre o lançamento do yuan digital exibida por parte da mídia e governos ocidentais, no início de abril, ecoou em alguma medida o sentimento do início da guerra fria nos anos 60 diante das especulações sobre a eventual concorrência para a hegemonia do dólar. Se a possibilidade de o yuan digital ameaçar a supremacia da divisa americana no comércio exterior é vista como ainda prematura, um ponto é avaliado como certo pelos especialistas: trata-se do tiro de largada de uma corrida pela digitalização das moedas nacionais. 

O projeto capitaneado pelo Banco Popular da China (PBoC), o banco central do país asiático, tem potencial de causar grandes mudanças. Assim como na época da corrida espacial, o que está em jogo é o domínio de uma tecnologia que pode aumentar a influência das nações. Agora, porém, a competição é para ocupar um lugar de destaque no futuro sistema monetário global. 

O lançamento do yuan digital “representa o início de um movimento que está sendo feito por BCs de várias partes do mundo”, diz o sócio de serviços financeiros da PWC, Eduardo Alves. De acordo com levantamento da consultoria, mais de 60 bancos centrais têm estudado, desde 2014, a emissão de moedas digitais. 

A divisa virtual chinesa pode ser considerada um divisor de águas por ser a primeira lançada por uma grande potência econômica global. O yuan digital faz parte de um grupo de iniciativas que o Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), o BC dos BCs, classificou como “moedas digitais de bancos centrais” ou CBDC, na sigla em inglês de “central bank digital currency”. 

“Trata-se de um marco na evolução do dinheiro”, diz o especialista americano Henri Arslanian, sócio e líder global de Crypto da PWC. “A China está facilmente de quatro a cinco anos à frente da maioria dos países quando se trata de CBDCs e do futuro do dinheiro.” 

De acordo com Arslanian, “o BC chinês tem se debruçado sobre o tópico do yuan digital desde 2014 e essa última rodada de testes têm sido impressionantes tanto em relação às perspectivas de escala quanto de velocidade”. 

No início de abril, mais de 100 mil chineses em diversas províncias puderam baixar um aplicativo para smartphone e usar o yuan digital para compras e transferências. Para cada unidade digitalizada disponível ao público o BC da China eliminou quantia equivalente em dinheiro físico. 

As CBDCs usam a mesma tecnologia das criptomoedas, o blockchain. No entanto, ao contrário de ativos do gênero mais conhecidos, como o bitcoin, o dinheiro digital dos BCs é centralizado e não tem nada de anônimo. 

“O bitcoin, por exemplo, é um modelo de blockchain no qual ninguém controla a rede, que é pulverizada em torno de milhões de máquinas espalhadas pelo mundo”, afirma o CEO do Mercado Bitcoin, Reinaldo Rabelo. “No caso de CBDC é tudo ao contrário, o nó é o BC, que faz a validação das transações e pode controlar tudo.” 

De acordo com Rabelo, “do ponto de vista técnico esse modelo é chamado de DLT [distributed ledger technologies ou tecnologias de registro distribuído, em tradução livre do inglês]”. Os DLTs são blockchains centralizados e controlados por um ente específico. 

As preocupações com o yuan digital surgem justamente diante das comprovadas qualidades das criptomoedas como ferramentas de transferência de valores para qualquer parte do mundo. Ainda que, como meio de pagamento para compras no dia a dia, moedas como o bitcoin enfrentem críticas pela volatilidade, menos conveniência e uma certa lentidão, quando comparadas a sistemas tradicionais como os cartões de crédito e débito, o fato é que, no universo das transações globais de grande porte, tudo muda de figura. 

Isso porque os sistemas de pagamentos internacionais mais usados pelas companhias e governos ainda têm intermediação de instituições financeiras. O mais conhecido é o Swift, sigla de “society for worldwide interbank financial telecommunication”, que identifica os bancos nas transações por meio de um código universal de 8 a 11 caracteres. As transferências podem levar de dois a quatro dias úteis para as devidas validações. 

Já o dinheiro virtual cria um sistema sem intermediação e no qual uma operação pode ser liquidada em minutos. “A moeda digital é muito parecida com o Pix, mas é um Pix global”, compara Rabelo, do Mercado Bitcoin. “Permite que se crie redes internacionais, com bastante velocidade de transação e funcionamento 24 horas por sete dias e resolve muitos problemas que o trade finance tem na operação via Swift e com liquidação entre bancos”, diz. 

Foi bem nesse ponto que a luz amarela de autoridades ocidentais se acendeu. Uma moeda digital lançada pela segunda maior potência econômica do mundo poderia passar a ser facilmente utilizada em negociações comerciais entre nações. E isso sem necessidade de converter o dinheiro para o dólar, como ocorre nas operações tradicionais. Segundo o BIS, o dólar é utilizado em 88% das transações globais. A 

China não esconde sua intenção de internacionalizar a moeda e tornar o yuan uma nova reserva de valor mundial. 

“Apesar de o foco inicial [do governo chinês] com o yuan digital estar no mercado doméstico, muitos acreditam que a moeda virtual possa servir a propósitos de comercio internacional, particularmente na ‘One Belt One Road Initiative’ [que engloba negócios com países da Europa, África e Ásia]”, afirma Arslanian, da PWC. 

“A condição para se tornar um player global é ter uma moeda conversível, negociável”, diz o economista e professor do Insper, Alexandre Chaia. “O que a China está fazendo com o yuan é cada vez mais tirando as amarras para virar uma moeda global. Mas isso é um processo que está só no começo.” 

Conforme o professor da escola de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), Pedro Brites, a China, na verdade, já começou a dar os primeiros passos de uso internacional do yuan digital. “A chegada do yuan digital ajuda nesse processo de internacionalização”, afirma. Segundo o especialista, o país asiático “já tem algumas negociações com hubs como Hong Kong e Oriente Médio para usar o yuan digital em negociações e é uma possibilidade a China dar o passo inicial estabelecendo esse modelo pela primeira vez”. 

“A moeda digital chinesa hoje não ameaça o dólar, mas esse movimento vai sacudir a moeda americana como base para as transações comerciais”, diz Alves, da PWC. 

“Não representa uma ameaça, porque ainda existe possibilidade de reação [dos EUA]”, acrescenta. 

O sócio de transformação da KPMG, Oliver Cunningham, enxerga ainda um longo caminho para o yuan, mesmo com a versão digital, se tornar uma moeda de referência e, eventualmente, concorrer com o dólar. “Honestamente não acho que a característica digital de uma moeda a transforme em referência global”, diz. “O dólar virou referência porque era muito menos volátil que outras divisas e a economia americana basicamente tem capacidade de saldar suas contas e isso dá sustentabilidade à moeda.” 

Conforme Cunningham, “a gente sabe que a China está estudando há muito tempo [o yuan digital], mas não será a única moda digital e acho que é natural imaginar que estejam na liderança desse movimento, mas não vão ficar isolados”. 

O especialista britânico Chris Skinner, autor de livros sobre revolução digital, enxerga o yuan como apenas mais um em um ecossistema global de múltiplas moedas nacionais digitalizadas. O que tende a mudar é que, nesse cenário, a hegemonia do dólar ficaria ameaçada não pela moeda chinesa especificamente, mas pela tecnologia da mesma forma como novos modelos digitais mudaram a face de várias indústrias. 

“A China percebeu que há um novo sistema monetário em construção, enquanto a maior parte da Europa e a América ainda não”, afirma Skinner. “A nova estrutura monetária é necessária para o mundo digital e vai substituir a rede tradicional [que usa o dólar como base]”, acredita. 

Conforme o autor britânico, “tech, comércio e finanças vão andar lado a lado no futuro”. Skinner acrescenta: “vamos esquecer da ideia de o yuan substituir o dólar e, em lugar, considerar a ideia de construção de um novo sistema de comércio”. 

Na avaliação de Brites, da FGV, seria muito precoce dizer que o yuan ganharia sozinho um protagonismo em relação ao dólar. “Parece-me mais ser o primeiro país a ter uma moeda digital e, com isso, ter alguma vantagem do pioneirismo, mas tem muitos países fazendo estudos para implementar moedas digitais.” 

Um estudo do Morgan Stanley indica que cerca de 86% dos BCs no mundo inteiro têm estudado a implementação de moedas digitais. “A China lançou os testes pilotos em várias cidades, o Banco Central Europeu recentemente concluiu uma consulta pública sobre o euro digital e deve tomar uma decisão no verão [do Hemisfério Norte, na metade do ano] e o Federal Reserve de Boston está pronto para iniciar um estudo no outono [do Hemisfério Norte, no terceiro trimestre]”, aponta o banco americano. 

As moedas digitais emitidas pelos BCs, na verdade, primariamente, têm sido estudadas como uma maneira de as autoridades reduzir o uso de dinheiro físico, bem como para aumentar o grau de controle sobre o fluxo monetário na economia. O Morgan Stanley ressalta que as autoridades já vinham expressando preocupação ao fato de que “o dinheiro já tem circulado quase que exclusivamente dentro de redes privadas de pagamentos, o que pode se tornar uma ameaça ao controle do sistema monetário pelos BCs”. 

A digitalização da moeda ajudaria a eliminar esse risco. “Com o dinheiro digital, o BC consegue acompanhar transações em tempo real”, explica Cunningham, da KPMG. “Esse tipo de transparência para o cálculo de liquidez e dinheiro em trânsito é enorme benefício, sem falar que o anonimato de uma transação em dinheiro físico some”, ressalta o especialista.

Para Alves, da PWC, “a moeda digital certamente pode se tornar uma ferramenta de política monetária, por exemplo no controle de liquidez”. O sócio da consultoria no Brasil afirma que a implementação desse sistema possibilitaria “criar mecanismos de rastreamento de rotinas de consumo de indivíduos e empresas em todo o país”. 

Além do maior controle pelos BCs, o dinheiro virtual também diminui custos associados ao papel moeda, que vão desde a impressão até o transporte dos valores. Outra crítica às cédulas físicas é o uso em transações ilícitas pelo fato de ser um meio sem possibilidade de rastreamento. Com a moeda digital esse anonimato desaparece. 

https://valor.globo.com/financas/noticia/2021/04/30/yuan-digital-deflagra-corrida-das-moedas-virtuais-de-bcs.ghtml

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