A Guerra Fria acabou sem que a sociedade internacional pudesse (ou talvez mesmo quisesse) redesenhar a ordem internacional herdada do fim da II Guerra Mundial e definida pela arquitetura liberal expressa no conjunto de tratados e organizações criados em São Francisco e em Bretton Woods, na segunda metade da década de 1940.
Vivemos ainda, em várias e importantes dimensões, dentro da moldura daquele abrangente sistema. A vitória mais tarde da causa articulada pelas potências ocidentais, após um longo enfrentamento de poder e ideologias e da queda do Muro de Berlim, em 1989, é a data terminal decisiva do que chamamos de Guerra Fria. Ela foi tão rápida e categórica que não criou espaço para que um grande exercício de redesenho da ordem internacional fosse sequer tentado.
A vitória dos EUA e de seus aliados foi tão ampla e o colapso da União Soviética tão devastador que os derrotados não tiveram forças para negociar e os vencedores não tiveram razões para negociar.
Assistimos agora, tardiamente, ao que deveria ter sido feito lá atrás. O triunfalismo americano, que levou à veleidade de uma ordem internacional unilateral, desenhada em Washington, está sendo desafiado cada vez mais. Tal fenômeno está relacionado ao enfraquecimento provocado no país hegemônico do nosso tempo por guerras longas, onerosas e indefinidas, por agudas e crescentes divisões internas, pela fragilidade de seus líderes, pela acelerada emergência da China como potência rival, pela importante reaproximação entre Moscou e Berlim e pela volta da Rússia ao jogo – não mais como superpotência, mas simplesmente na sua condição de grande potência, rotulação para a qual tem uma titularidade irrefutável.
Há quase sempre turbulências quando um ciclo da história se esgota e o novo ainda não se definiu de maneira estável ou, pelo menos, em ampla medida, previsível. É assim o momento em que vivemos, e com ele costuma vir todo um conjunto de riscos e oportunidades. No curto prazo, é bom reconhecer, mais riscos do que oportunidades.
A incessante expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em direção ao Leste iria levar, como estamos assistindo, a uma previsível reação russa ao que parece ser, da perspectiva de Moscou, um cerco cada vez mais estreito e numeroso e uma presença cada vez mais evidente em sua vizinhança de associados da aliança militar e de segurança ocidental, que foi instrumental na derrubada da União Soviética. Havia mesmo a esperança de que a Otan, decisiva na Guerra Fria, não perduraria ou que ao menos guardaria a dimensão daqueles anos.
A sociedade internacional deve agora atuar em duas frentes necessárias, mas em alguma medida contraditórias. A primeira é a defesa dos princípios fundamentais expressos na Carta da ONU e nos tratados e acordos que cada país subscreveu. O respeito aos princípios básicos do direito internacional e a obrigação de buscar soluções pacíficas para as controvérsias que não são negociáveis.
Por outro lado, existe a percepção de que as preocupações russas têm que ser levadas em consideração de alguma medida e de que formas de acomodação devem ser buscadas e ajustadas. Os EUA, por exemplo, definiram a Doutrina Monroe reservando todo o continente americano como sua zona de influência, quando não tinham nem de longe a dimensão do poder que adquiriram mais tarde. São inúmeros os exemplos de países reagindo assim às ameaças a sua segurança em seu espaço vital.
O que importa é encontrar os meios e modos para que arranjos imperfeitos, mas geralmente aceitáveis, possam garantir a paz e a ordem. Arranjos que levem em conta também preocupações legítimas e que não devem ser ignoradas. Estamos hoje envolvidos, mais uma vez, num exercício dessa natureza.
O Brasil atravessa um mau momento na sua projeção externa e não será fácil mobilizar sua diplomacia para dizer o que devemos fazer e ajudar no que for possível e prudente fazer. Importa agora, essencialmente, errar pouco.
Existe um primeiro e angustiante momento em toda crise, no qual a falsificação da verdade, o aprestamento e a mobilização de meios militares, a gesticulação enfática, a mobilização das opiniões públicas nacionais e internacionais e a ameaça de sanções e a aparente intransigência das retóricas empregadas pelos adversários parecem desempregar a diplomacia e seus instrumentos. A diplomacia sempre volta. Vamos procurar atravessar a atual turbulência com poucas avarias para os nossos interesses. Que, no caso, não são pequenos. Marcos Azambuja foi embaixador é conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri)
https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/02/24/uma-guerra-fria-requentada.ghtml