Ucrânia gera guerra de narrativa entre Ocidente e Rússia

Financial Times; Cruzei na semana passada, nas ruas de Berlim, com um homem alto e agitado, que gritava no ar noturno. O tema de seu discurso era que o presidente russo, Vladimir Putin, é o único líder global digno de confiança e que os americanos mais uma vez estão tentando envolver a Alemanha numa guerra.

É tentador, mas confiante demais, classificar cenas como essa como algo sem sentido. Isso porque a crise na Ucrânia está ocorrendo num período em que teorias da conspiração são abundantes em todo o mundo ocidental. Os líderes que lutam para formular uma resposta eficaz e unificada à Rússia sabem que a opinião pública é fundamental. 

A opinião pública no Ocidente poucas vezes demonstrou níveis tão baixos de confiança em seus líderes políticos. A pesquisa anual Edelman Trust Barometer indicou em janeiro um “colapso da confiança nas democracias desenvolvidas”: só 46% dos alemães, 44% dos britânicos e 43% dos americanos dizem confiar no seu governo.

A luta pela Ucrânia está se desenrolando enquanto as ruas da Ottawa, a capital do Canadá, estão repletas de manifestantes anti-vacina – protestos similares estão ocorrendo em Paris e previstos para outras capitais ocidentais. Nos EUA, o presidente Joe Biden ainda tem de lidar com teorias da conspiração sobre os negócios passados de seu filho com a Ucrânia. 

A questão da confiança é agora fundamental para a luta internacional pela Ucrânia. O governo russo é especialista em “guerra híbrida” – em que informações e opiniões fazem parte da batalha. Putin é um ex-espião. 

Os governos ocidentais estão cientes de que foram enganados pela guerra de informação russa no passado, principalmente nas eleições presidenciais americanas de 2016. É em parte por causa disso que a Cara Branca agora está fornecendo “briefings” de inteligência não só ao presidente, mas ao mundo em geral. 

Jake Sullivan, assessor de Segurança Nacional de Biden, alertou na sexta-feira para o acúmulo de tropas russas na fronteira da Ucrânia e para uma possível invasão iminente. O objetivo não foi apenas dar aos americanos na Ucrânia tempo para sair do país. Foi um esforço dos EUA para obter o controle da narrativa antes da Rússia. 

Mas qualquer esforço dos EUA para usar a inteligência para moldar a opinião pública mundial tem de enfrentar a sombra da guerra no Iraque. O esforço americano bem- sucedido em formar uma “coalizão dos dispostos” em 2003 foi baseado na divulgação de alegações de inteligência de que o regime Saddam Hussein tinha  “armas de destruição em massa”. A incapacidade de encontrar essas armas desferiu um golpe na credibilidade dos EUA do qual o país nunca se recuperou totalmente. 

No entanto, há uma diferença importante entre o tipo de inteligência usada na Ucrânia e no Iraque. A existência de armas de destruição em massa sempre foi contestada. O fato de 130 mil soldados russos estarem concentrados agora na fronteira com a Ucrânia não é contestado nem por Moscou. 

A guerra de propaganda está sendo travada no momento em torno da questão de intenção. A Rússia nega a intenção de invadir e acusa o Ocidente de promover deliberadamente a ameaça. A posição russa é de que suas tropas só se moverão se forem provocadas pela Ucrânia. As alegações frequentes do Ocidente de que a Rússia planeja uma operação camuflada, para forjar essa provocação, são cruciais nessa batalha de narrativas. 

Alguns governos ocidentais podem presumir complacentemente que vencer uma guerra de propaganda com o Kremlin não deve ser difícil. Afinal, que credibilidade Putin pode ter depois de primeiro negar o envio de tropas para anexar a Crimeia, em 2014, e mais tarde admitir isso? Ou depois de enviar assassinos para matar um ex- agente russo em Salisbury, na Inglaterra; e depois colocá-los na TV para dizerem que visitaram a cidade duas vezes, mas só para conhecer a sua famosa catedral? 

Mas o sucesso dos russos não exige convencer os eleitores ocidentais de que Moscou está dizendo a verdade. Pode ser igualmente útil sugerir apenas que a Casa Branca também está mentindo. 

Ao contrário do Iraque em 2003, os governos ocidentais parecem em grande parte estar de acordo com o que está acontecendo na Ucrânia. França e Alemanha se opuseram à guerra do Iraque. Seus líderes à época chegaram a compartilhar essa oposição com Putin. Desta vez o Ocidente está unido contra às ameaças russa. As diferenças entre Washington, Berlim, Paris e Londres são principalmente sobre a estratégia diplomática. 

Mas a opinião pública ocidental segue sendo um elo fraco. Pesquisas recentes sugerem que 26% dos americanos concordam que “Joe Biden é um presidente fantoche” controlado por um “Estado Profundo”; e que 31% dos americanos, 28% dos franceses e 23% dos alemães pensam que existe “um grupo de pessoas que secretamente controla os acontecimentos… e governa o mundo juntas”. 

Esse tipo de ceticismo extremo e irracional é uma base fraca para se formar um consenso para uma resposta política ocidental que provavelmente será cara e perigosa. Infelizmente, Putin tem muito material com que trabalhar enquanto tenta explorar as fraquezas do Ocidente. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/02/14/ucrania-gera-guerra-de-narrativa-entre-ocidente-e-russia.ghtml

Comentários estão desabilitados para essa publicação