Para reformar economia, Biden talvez precise ser conservador

Até mesmo o maior dos líderes democráticos do último século escolheu suas batalhas. Ao moldar uma nova política econômica, o New Deal, Franklin Roosevelt preservou grande parte do velho pacto na cultura. A causa dos direitos civis foi adiada para outra geração. Leis rígidas de imigração foram mantidas, mesmo com massas oriundas da Europa suplicando para entrar nos EUA. Se havia no ar uma vileza pós-Era do Jazz, ela não se limitou a Washington. Hollywood começou a fazer valer seu código contra temas obscenos. 

É difícil prestar conta da mistura de reforma material e retrocesso cultural naqueles anos. Mas uma teoria se apresenta. Uma sociedade só consegue absorver um número limitado de mudanças por vez. Se as regras da vida econômica estão em evolução, as pessoas anseiam por estabilidade e mesmo uma regressão em outras áreas. Visto desse ângulo, o conflito dos anos 60 pode ser interpretado como os espasmos de uma nação tentando mudar demais em frentes demais em um período de tempo muito curto. 

A questão é se o suposto herdeiro de Roosevelt aceita essa limitação. Uma alta recente da inflação vem alimentando a ideia de que está a caminho uma reação ao “Estado Grande” do presidente Joe Biden. Mas não é sua ousadia econômica por si só, que é excepcional. É sua coincidência com outra grande mudança. 

Os crimes violentos estão aumentando nas cidades americanas há algum tempo, revertendo a tendência de pelo menos uma geração. Ao mesmo tempo, a fronteira sul do país foi um local de sofrimento e confusão durante a maior parte deste ano. As autoridades tiveram de lidar com mais migrantes nessa área em abril do que em qualquer mês desde o começo do século. Depois – como uma terceira fonte de insegurança cultural -, há um incipiente conjunto de questões que surgem sob o neologismo do momento, “woke” (despertar), com todas as suas implicações ao direito de liberdade de expressão previsto na primeira emenda da constituição dos EUA. 

Mesmo juntos, esses conflitos sociais dificilmente constituem uma revolução. Também não se pode dizer que o presidente seja o principal autor desses conflitos. A onda de crimes começou sob seu antecessor, Donald Trump. A política de identidade tem sido gestada dentro da esquerda ocidental desde que os filósofos franceses deram uma guinada pós-moderna na década de 60. 

Mas se a agitação cultural não é toda culpa de Biden, ela é um problema dele. Os americanos estão sendo solicitados a absorver um rompimento na doutrina econômica junto com uma mudança do contexto social. Como que capturando o problema em miniatura, o Congresso está no momento engajado num aumento dos impostos e uma reforma da polícia. Estes são pontos difíceis de serem vendidos por conta própria. Biden está tentando as duas coisas ao mesmo tempo. É muita coisa para processar vindo de um homem que muitos vislumbraram como uma pausa para tomar fôlego, depois de um presidente dramático. 

A ideia de a reforma econômica e a cultural formarem um par é recente. A história quase sempre produz construtores do bem-estar social que têm um perfil conservador até o ponto da nostalgia. Clement Attlee no Reino Unido, Charles de Gaulle na França e Otto von Bismarck na Alemanha são apenas os casos mais marcantes. Para eles, a redistribuição era uma cola nacional, e não uma fonte de “justiça” abstrata, e mudanças deveriam ser feitas de forma sequencial, e não de uma vez só. 

Em outras palavras, o que Biden está tentando – mudar no contexto de ainda mais mudança – é algo perturbador pelos padrões não só da política americana como da política ocidental. Ajuda o fato de ele ser, por causa da idade e pelo histórico de votos, uma figura naturalmente tranquilizadora. Não espere que essa imagem vá durar se os eleitores começarem a se sentir golpeados pelos acontecimentos. 

O erro mais fácil na política é assumir que as ideias que parecem boas nos seus próprios termos perfazem um todo popular. Na realidade, os eleitores não ouvem as notas, eles ouvem um acorde. Um amontoado de reformas pode exaurir e desalentar até aqueles que as admiram individualmente. Não são tanto as políticas de Biden que convidam a represálias do eleitorado nas eleições de meio de mandato, e sim seu número, alcance e simultaneidade. 

A regra de Gustave Flaubert de que uma pessoa só pode ser radical até certo ponto (“seja regular e ordeiro em sua vida”, disse o escritor, “para que você possa ser violento e original em seu trabalho”) também se aplica à política. Tivesse Biden obtido vitórias esmagadoras como a de 1932 ou a de 1980, quando o povo claramente exigia um novo rumo, ele poderia ter conseguido uma licença para uma mudança total. 

Em vez disso, e venceu de maneira clara, mas não esmagadora, contra um oponente singularmente inepto, num ano anormal da história mundial. O Congresso encontra-se em mãos democratas pela menor das margens. Trata-se de um mandato frágil para se depositar tanta atividade. Aqueles que o conhecem dizem que o presidente contrariou o arco normal da vida ao entusiasmar-se com a mudança no decorrer do tempo. É uma mudança nobre, mas que não necessariamente irá agradar. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/05/26/para-reformar-economia-biden-talvez-precise-ser-socialmente-conservador.ghtml

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