OCDE: Crise levará todos os países à recessão

Em entrevista ao Valor, a economista-chefe da entidade, Laurence Boone, diz que as projeções apontam para recessão em todos os países. No cenário de duplo evento, ou seja, de uma segunda onda da covid-19, o crescimento global é projetado para se contrair até 7,6%, podendo se recuperar para 2,8% no ano que vem. O declínio da atividade nos países da OCDE, que reúne os ricos e os recém industrializados, pode chegar a 9,25% em 2020. No cenário com apenas o surto atual, a queda da produção continua elevada, com contração de 6%, mas com a recuperação ano que vem podendo alcançar 5%. 

A economista-chefe da OCDE mostra preocupação com a vulnerabilidade financeira de economias emergentes, com o salto na dívida pública em bom número de países (no Japão, chegará a 250% do PIB) e com o aumento do desemprego. Em todo caso, destaca que no momento as condições fiscal e monetária permitem manter políticas para uma recuperação mais sólida da economia. Leia os principais trechos da entrevista: 

Valor: A OCDE faz não uma, mas duas projeções sobre a economia mundial desta vez. É pelo tamanho das incertezas? 

Laurence Boone: Sim. A covid-19 traz a pior crise de saúde e econômica desde a Segunda Guerra Mundial. Temos uma extraordinária incerteza sobre o vírus e fica difícil estabelecer perspectivas econômicas. Por isso, pela primeira vez na história da OCDE, fazemos dois cenários em vez de um. Conhecemos muito pouco sobre a evolução da pandemia. A contaminação diminui em alguns países e sobe em outros. Falamos de economia mundial na corda bamba. A retomada econômica será bem lenta e incerta, e a crise terá efeitos duradouros, afetando desproporcionalmente os mais vulneráveis. É muito difícil para empresas e responsáveis de políticas econômicas fazerem projeções. Tudo muda muito rapidamente. Distanciamento físico e testes, rastreabilidade e isolamento são instrumentos para enfrentar o vírus, mas podem nem ser suficientes para evitar um segundo surto. 

Valor: Ou seja, não chegamos ao fundo do poço ainda? 

Boone: Essa crise é diferente, o vírus se propagou em todos os países. O choque é de uma amplitude inacreditável. Nunca tivemos uma crise econômica que atingiu todos os países. A atividade econômica colapsou no shutdown, com queda entre 20% e 25%, dependendo do país. 

Valor: Em abril, quando a OCDE reduziu sua projeção de crescimento mundial de 2,9% para 2,4% em 2020, algumas estimativas apontavam perda de US$ 400 bilhões. E agora, com contração de 7%? 

Boone: O que posso dizer é que perdemos entre 5 a 8 anos de renda por pessoa, é algo gigantesco. Até o fim de 2021, a perda de renda supera a de qualquer outra recessão nos últimos 100 anos fora de períodos de guerra, e as consequências são enormes para as pessoas, firmas e governos. 

Valor: Até que ponto vai se acelerar a mudança de “grande integração” para “grande fragmentação” na economia mundial? 

Boone: Estamos numa encruzilhada. Ouvimos muitos discursos protecionistas no comércio e em investimentos. Fronteiras foram fechadas e podem continuar assim, pelo menos em parte, enquanto o vírus continua. Nessa crise vimos [países] colocando barreiras à entrada de material médico. Quando se faz isso, torna a fabricação mais complicada e custosa e somos todos penalizados. Pode-se ter vontade de diversificação de produção, de estoques mais importantes, mais produção local. Mas para muitos produtos a cadeia global de valor permite inovação e a muitos países de trabalhar juntos. Uma lição dessa crise é de que precisamos de mais cooperação. 

Valor: Até que ponto os países emergentes são mais vulneráveis? 

Boone: Estamos inquietos em relação aos países emergentes, porque você viu o choque de fuga de capitais, o choque sobre o sistema de saúde, a queda nos preços de commodities, a situação de trabalhadores informais que precisam de proteção. As perspectivas econômicas são menos fortes, e os emergentes podem ter mais dificuldades para se financiar. Esse é um ponto de inquietação. 

Valor: O mundo sai dessa pandemia também mais endividado?

Boone: O aumento do endividamento público nos inquieta. Isso vem com o apoio dado à economia. E ainda vamos ter necessidade de mais. Não devemos repetir os erros da crise financeira global de 2008. É preciso continuar [os programas de ajuda]. Mas isso não quer dizer que é para se fazer qualquer coisa. É preciso focar bem, proteger os mais vulneráveis, apoiar trabalhadores para novos empregos, assim como fazer investimentos necessários para uma transição para uma economia mais robusta. O apoio às empresas deve ter regras claras, transparentes e justas. Para sustentar a atividade pode-se investir no digital, em economia mais limpa, dar um impulso à economia mais sustentável. O desemprego também causa inquietação. As cifras são enormes, como mostramos em nosso panorama. O importante é que as políticas econômicas [adotadas agora] devem desenhar um futuro melhor e um amanhã resiliente. 

Valor: A senhora sugere aos governos acelerar a reestruturação de empresas. Como fazer isso? 

Boone: Primeiro, os governos podem fazer mais, melhor e mais rápido. Dizemos que mesmo se o crescimento voltar em alguns setores, a atividade em geral continuará baixa por um tempo. Capital e trabalhadores de setores e negócios afetados precisarão se mover para segmentos em expansão. Recomendamos ajuda para que empresas viáveis possam se ajustar. Os bancos conhecem as companhias, e podem ajudar na reestruturação sem estigma para os empresários. Para as pessoas, é preciso ser mais flexível. Mesmo se alguém recebe ajuda parcial de desemprego, pode ser autorizada a trabalhar uma parte do tempo, por exemplo, num centro de idosos. Quem trabalha num setor que não funciona mais, é preciso que tenha uma substituição de renda. 

Valor: Quais setores vão crescer no pós-crise e quais vão encolher? 

Boone: Há setores que podem ter recuperação mais rápida, como industrial e construção. Já onde há mais contato físico, será mais complicado, como aviação e hotelaria. Será preciso ajudar alguns setores em maior quantidade do que até agora. Há setores que se transformarão, como comércio eletrônico, cuidados médicos, entregas, educação a distancia, enfim, digital. 

Valor: No Brasil, a política caótica de combate ao covid-19 afetou adicionalmente a economia? 

Boone: As decisões sobre confinamento são mais a nível dos Estados, no Brasil. A resposta econômica pelo Brasil foi boa, focou nas famílias mais pobres e em muita liquidez do Banco Central. No contexto da América Latina, foi uma resposta forte e permitiu ajudar milhões de trabalhadores informais. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/06/10/crise-levara-todos-os-paises-a-recessao-segundo-a-ocde.ghtml

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