O que a água – e as armas nucleares – têm a ver com as tensões entre Índia e Paquistão?

O mês de maio viu uma perigosa crise entre Índia e Paquistão que tirou dezenas de vidas. Foi necessária intensa mediação internacional para arrefecer os ânimos entre os vizinhos nucleares que possuem suas histórias entrelaçadas. Embora aparentemente tenha sido breve, a crise entre os dois países não foi totalmente desarmada e revela uma gama complexa de relações, além de envolver o recurso mais precioso do mundo. Água.

Desde a partição do Raj britânico, os dois países travaram três guerras abertas, em 1947, 1965 e 1971. Essa última leva à independência de Bangladesh e foi acompanhada do genocídio bengali.

Desde então, ocorreram escaramuças normalmente limitadas, com a mais extensa sendo a guerra de Cargil, em 1999. Habitualmente esses combates acontecem pela Linha de Controle, a fronteira de facto entre os dois países, que cruza a região da Caxemira.

O confronto de 2025 foi originado na mesma Caxemira, que é reivindicada em sua totalidade por ambos os Estados, quando um atentado terrorista matou 26 pessoas da fé hindu. A Índia acusou o Paquistão de apoiar os grupos extremistas muçulmanos que realizaram o atentado. O Paquistão afirmou que se tratava de uma artimanha indiana, uma “bandeira falsa”. Seja como for, os dois países mobilizaram suas forças para uma eventual escalada.

Os quatro dias de ataques deflagrados estão inseridos em um período mais amplo de crise que, por sua vez, faz parte de um conflito existente há quase oitenta anos. Nas últimas décadas, o poder indiano e a projeção global do país impuseram uma distância considerável entre os dois países, com inegáveis vantagens indianas em termos econômicos, demográficos, militares e de presença global.

Isso não quer dizer, entretanto, que o Paquistão não seja uma potência regional ou não detenha capacidades notáveis em algumas áreas, como a inteligência. Os dois países hoje também estão inseridos em uma complexa e contraditória rede de interesses e conexões. Até meados dos anos 1990, os EUA eram os principais aliados do Paquistão. Hoje esse papel é da China, por larga vantagem.

As relações econômicas e militares entre Paquistão e China são profundas, com um vasto corredor de infraestrutura “contornando” a Índia, cortando o Paquistão e conectando os chineses ao oceano Índico. Os dois países desenvolvem profundos projetos militares conjuntos. Também são aliados na disputa por influência com a Índia no sul da Ásia, com reveses indianos recentes, com Bangladesh e Maldivas com governos pró-China.

A escaramuça desse mês está inserida também nesse contexto, de disputa entre Índia e a aliança sino-paquistanesa. Isso deixando de lado as complexas relações exteriores dos países, muitas vezes contraditórias. Por exemplo, a Índia possui ótimas relações com Israel e com o Irã ao mesmo tempo. Os dois países também estão em lados opostos no conflito do Cáucaso do Sul, e o Paquistão é o único país do mundo que não reconhece a existência da Armênia.

O conflito também é ótimo exemplo do fato que o poder nuclear é uma faca de dois gumes. Por um lado, a elevada tensão entre os dois países gerou alarme e o risco de uma guerra nuclear. Por outro, o número de mortos nas guerras entre os dois países caiu vertiginosamente após o estabelecimento dos arsenais nucleares, já que o medo de uma escalada serve de dissuasão do conflito, uma espécie de “doutrina MAD” regional.

Finalmente, existe a questão da água. Após o atentado na Caxemira, a Índia suspendeu o Tratado das Águas do Indo, estabelecido em 1960, que rege a bacia hidrográfica comum aos dois países e que o governo indiano há tempos insistia que estava descontente. Espera-se que essa suspensão venha a ser revertida, mas a relação entre água e guerra já não é mais apenas um elemento de filmes distópicos.

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