Influente, Harris será o alvo preferencial na eleição

Joe Biden não tem 77 anos do mesmo jeito que Mick Jagger tem 77. O candidato democrata à Casa Branca carrega seus anos com um esforço que não passa despercebido nem por seus entusiastas. Embora não descarte um segundo mandato, declarar-se uma “ponte” para a próxima geração indica só um. Sem viagens e eventos ao ar livre, esta campanha eleitoral da covid-19, a campanha que não é, tem poupado Biden. O principal cargo público do mundo não fará isso.

Kamala Harris, portanto, se perfila para ser uma copresidente dos EUA. Na senadora da Califórnia, Biden arregimentou não só uma companheira de chapa e uma executiva para compartilhar o fardo, mas (me perdoem o tom macabro) alguém viável para substituí-lo. Dado o gosto de Biden pelas relações exteriores, ela pode ter espaço para se impor na esfera doméstica. Sua influência poderá ser enorme. 

E também ambígua. Biden escolheu Harris, mas qual Harris? Os republicanos torcerão para que seja a tenaz promotora, com discurso centrista de Terceira Via. “Pegar leve com o crime não é ser progressista”, disse ela quando disputou o cargo de promotora em San Francisco, em 2003. Como procuradora-geral da Califórnia, ela confrontou pais de alunos difíceis com mais firmeza do o fez com o rígido sistema de Justiça do Estado. 

Os progressistas torcerão pela outra Harris. A que se opôs à pena de morte bem antes do que muitos em seu partido e a que vota no Senado com uma inclinação bem à esquerda. No Senado, ela questionou de forma incansável indicados republicanos e testemunhas. 

Não há vergonha na inconsistência: prefiro um oportunista a alguém ideológico. “Quando os fatos mudam, mudo de opinião.” A frase atribuída a John Maynard Keynes, seja realmente dele ou não, é limitadora demais. As opiniões das pessoas podem evoluir, mesmo sem que os fatos mudem. 

Acontece que Harris, hoje com 55 anos, sempre na vida política, já deveria estar mais definida. “Enigma” é um eufemismo para alguém cujas crenças centrais estão tão soltas no ar. Estivesse ela concorrendo a ser uma vice-presidente cerimonial, ninguém se preocuparia. Mas, se for eleita, ela terá importância. E suas opiniões também. 

Olhando para trás, é estranho que uma candidata tão badalada não tenha se saído melhor na sua campanha presidencial. Ela era uma política importante de um Estado cuja economia é maior do que a da maioria dos países do G-20 (com todos os doadores que isso implica). Ela é uma mistura de raças num partido que tem boa parte da base de apoio vindo das minorias. Seu desempenho no Senado indica não só que é implacável, mas também perspicaz. 

No fim das contas, ela carecia de uma imagem de autenticidade. Nas prévias democratas, os candidatos que se inclinaram mais à esquerda no fim da carreira, os senadores Cory Booker e Kirsten Gillibrand, tropeçaram. Os eleitores preferiram algo genuíno à esquerda (Bernie Sanders, Elizabeth Warren) ou claramente moderado, como o prefeito Pete Buttigieg. As políticas defendidas não importaram tanto quanto a convicção com a qual elas eram defendidas. 

Biden moveu-se um pouco mais à esquerda do que seu “antigo eu”, mas ele já gozava da confiança dos demais. Tragédias pessoais e quase 50 anos de vida pública 

outorgam isso. Ele “conquistou” o direito de sentir a direção do vento. 

Naturalmente, o eleitorado nacional não é igual à base democrata. E, se nesta semana Biden tivesse escolhido Warren ou um prefeito sem experiência, o presidente Donald Trump estaria comemorando com seus auxiliares de campanha. A dupla Biden-Harris é muito mais intimidante. 

Só não é imbatível, em parte, pela indefinição do que ela representa. O ex-premiê britânico Tony Blair, numa passagem maliciosa de seu livro de memórias, explica como se faz uma campanha negativa. O erro clássico, diz ele com a certeza de quem foi eleito três vezes, é partir para o ataque violento, exagerado. Os eleitores indecisos acabam ignorando essas agressões. O que os influencia é a acometida mais suave, manifestada mais com pesar do que com raiva. 

Trump nunca vai persuadir os americanos de que Biden é uma ameaça ao país e “contra Deus”. A crítica que pode ter impacto é a de que ele é muito velho e frágil para exercer sua Presidência. Em algum momento, outras forças acabarão predominando. A incerteza dobra de tamanho se uma dessas incertezas for uma vice-presidente multiforme, que foi linha-dura com o crime até deixar de ser, cujos planos para a saúde estão sempre variando. Caveat emptor (“cuidado, comprador”, em latim). 

“Veja bem, eu até gosto do Joe, mas você sabe o que realmente está comprando [se votar nele]?”, um presidente esperto poderia dizer, insinuando que Harris é de extrema esquerda. Quando se é uma tela em branco, os outros podem pintar você como quiserem. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/08/13/influente-harris-sera-o-alvo-preferencial-de-trump.ghtml

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