Uma grande especulação, que já vem de alguns meses, está ganhando força no mundo diplomático, político e acadêmico global desde a posse de Donald Trump nos EUA. O enredo sugere que Washington e Pequim poderiam negociar um acordo de divisão do mundo que resolveria vários problemas para ambos, além de evitar um choque direto entre as duas potências. Há sinais de que isso pode estar sobre a mesa nas duas capitais.
Uma versão básica dessa negociação envolveria a disposição de Trump de abandonar a proposta de aplicar tarifas punitivas de até 60% sobre produtos chineses em troca de Pequim pressionar a Rússia a encerrar a guerra na Ucrânia, que em 24 de fevereiro fará três anos. Moscou depende do apoio chinês para o seu esforço de guerra, assim como a Ucrânia depende do apoio americano. Isso dá alavancagem a Pequim e Washington para pressionar os dois lados em conflito. A parceria com a Rússia é certamente importante para a China, mas perder o mercado dos EUA e da Europa pode trazer um prejuízo econômico difícil de calcular para os chineses, especialmente num momento em que a economia do país enfrenta dificuldades.
O fim da guerra traria ainda benefícios à economia global, pois poderia reduzir o preço do petróleo, do gás, dos fertilizantes e de commodities agrícolas exportadas pelos países em guerra, como trigo e girassol. Isso poderia gerar queda da inflação e acelerar cortes de juros pelo mundo. O jornal britânico “Financial Times” informou nesta semana que a União Europeia está debatendo voltar a comprar gás russo caso haja acordo de paz na Ucrânia. E Trump poderia assim reivindicar o seu almejado Nobel da Paz, que ele parece ver como um reconhecimento da sua capacidade de negociação e da sua condição de estadista.
Mas uma reportagem publicada na semana passada pela revista britânica “The Economist” sugere que uma eventual negociação entre Trump e o presidente chinês, Xi Jinping, poderia ser bem mais abrangente. Envolveria ainda: uma solução para o caso da rede social chinesa TikTok; uma possível mudança na política americana para Taiwan, que passaria a se opor à independência da ilha (hoje não há clareza sobre isso); e o possível envio de forças de paz chinesas (e talvez de outros países dos Brics, inclusive do Brasil) para a Ucrânia. Em discurso por vídeo no recente Fórum Econômico Mundial de Davos, Trump defendeu ainda a desnuclearização dos EUA, da Rússia e da China, possivelmente se referindo à redução, e não à eliminação, dos arsenais, que drenam recursos dos países.
Mas, principalmente, uma negociação desse tipo abriria caminho para uma governança global baseada num G2, com EUA e China liderando suas respectivas esferas de influência.
Isso seria algo parecido com o que ocorreu na conferência de Ialta, que no dia 4 de fevereiro completará 80 anos. Quando a Segunda Guerra Mundial estava acabando, EUA, União Soviética e Reino Unido, as potências vencedoras, na prática dividiram o mundo em dois blocos, um capitalista, sob a liderança de Washington, e outro comunista, com Moscou á frente.
Não está clara a situação da Rússia numa possível grande barganha entre EUA e China. Na semana passada, o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que está pronto para negociar a paz na Ucrânia, mas com Trump, e não com os ucranianos. Segundo a mídia russa, Moscou programou uma intensa celebração dos 80 anos de Ialta, cidade ucraniana que à época pertencia à URSS. Parece ser uma tentativa de conseguir um lugar à mesa com EUA e China.
Repercutiu fortemente na mídia russa nos últimos dias uma análise do colunista Andreas Kluth, da agência de notícias Bloomberg, que dizia que “o mundo está condenado a uma nova Ialta entre Trump, Putin e Xi, isto é, a um nova pacto global pós-guerra”. O colunista chama, porém, os três líderes de imperialistas e diz que “será um pacto entre imperialistas baseado não em uma visão ideológica grandiosa, mas apenas na noção de que a força é certa e a coerção é justa. Isso pode levar à guerra entre eles se não conseguirem chegar a um acordo sobre os despojos. E certamente condenará alguns países pequenos que se encontram no meio”.
Um “grande e bonito” acordo com a China, como descreveu a “Economist”, usando uma expressão típica de Trump, poderia abrir caminho ainda para que os EUA assumissem o controle direto da Groenlândia e do Canal do Panamá, contra o quê Pequim não teria muitas objeções.
Em favor dessa especulação há o comportamento cauteloso, quase amistoso, entre Trump e Pequim neste início de novo governo nos EUA. Durante a campanha eleitoral, Trump prometeu aplicar tarifas punitivas contra produtos chineses, de até 60%. Essa ameaça sumiu do discurso oficial. Em vez disso, o presidente anunciou no sábado tarifas de 25% contra o México e o Canadá, dois países aliados (mas com governos de esquerda), e de apenas 10% para produtos chineses, o que é quase o mínimo que Pequim poderia esperar. Nos últimos dois meses, Trump disse em ao menos duas ocasiões que, juntos, EUA e China podem resolver muitos problemas globais. O americano também assinou no dia da posse um decreto dando mais tempo para a resolução do caso TikTok (o app havia sido proibido pela Justiça americana) e pediu ajuda da China para resolver o conflito na Ucrânia.
A eventual aproximação com a China renegaria as promessas de campanha de Trump de endurecer a disputa estratégica com o rival. Poderia também gerar oposição de autoridades mais anti-China no governo e no Congresso americanos. E causaria preocupação em aliados dos EUA pelo mundo.
Além disso, há divergências de longo prazo entre os países, como a disputa pela primazia em áreas de alta tecnologia, que dificilmente poderiam ser resolvidas. Mas elas podem ser adiadas. Trump precisa apenas que os próximos quatro anos sejam de paz e prosperidade, para avançar a sua agenda conservadora e buscar um lugar entre os maiores presidentes dos EUA (e talvez entre os rostos esculpidos no Monte Rushmore). Afinal, a disputa entre EUA e China marcará este século, mas não precisa necessariamente contaminar as relações nos próximos anos.
Em favor dessa ampla negociação com Pequim estão ainda a admiração declarada de Trump por sistemas de governo autoritários, como o chinês, e o senso pragmático e negocial do americano, especialmente quando ele percebe um bom acordo em que pode se vangloriar de ser o vencedor