China se volta para dentro com afastamento dos EUA

Mas Pequim deveria se lembrar de que o grande sucesso dos últimos 40 anos foi construído com base em uma política de “portas abertas” ao mundo exterior 

Por Financial Times 

Os acontecimentos recentes envolvendo duas empresas nos EUA e na China contam uma história clara da separação das duas superpotências. O anúncio dos EUA de colocar a SenseTime, uma das maiores companhias chinesas de inteligência artificial, em sua lista negra, e a decisão da Didi, versão chinesa do Uber, de tirar suas ações da Bolsa de Nova York compartilham os mesmos antecedentes. Com a desconfiança estratégica aumentando no âmbito estatal, a bonança da arrecadação de recursos pelas empresas chinesas em Wall Street chegou ao fim. Isso não é pouca coisa. Segundo a Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China, 248 companhias chinesas listaram suas ações nos EUA até maio deste ano, no valor total de US$ 2,1 trilhões. 

Em graus variáveis, essas listagens parecem vulneráveis, graças à profunda suspeita que está congelando os laços entre as superpotências. Pequim e Washington estão dominados pelo desejo de se separar, especialmente onde interesses estratégicos e dados sensíveis estão em jogo. 

A Didi, que em junho fez a maior operação de emissão de ações de uma companhia chinesa nos EUA desde a Alibaba em 2014, provocou a ira de Pequim, que temia que o vasto mapeamento da empresa de aplicativo de transporte e outros dados sensíveis pudessem cair em mãos de estrangeiros. 

A decisão dos EUA de pôr a SenseTime na lista negra também foi motivada por questões de segurança. A SenseTime passou a fazer parte da relação de 59 empresas chinesas de tecnologia de defesa e vigilância nas quais os americanos estão proibidos de investir desde junho, por decisão do presidente Joe Biden. O impacto da inclusão da SenseTime na lista foi rápido. Em poucos dias, a empresa chinesa anunciou que adiará sua oferta pública inicial de US$ 767 milhões em Hong Kong. 

No centro da ação de Washington está uma compreensível antipatia pelos investidores americanos que apoiam uma empresa que está envolvida no “complexo industrial militar” da China e que os EUA acusam de permitir abusos dos direitos humanos contra os uigures muçulmanos na província de Xinjiang, no noroeste do país. 

Muito mais difícil é saber onde essas preocupações devem terminar. A China desenvolve um esforço de “toda a sociedade” para alcançar a liderança em inteligência artificial. O país inaugurou uma estratégia de “fusão civil-militar”, pela qual até mesmo empresas privadas podem ser obrigadas a entregar tecnologias e dados essenciais para servir aos objetivos do Exército chinês. O efeito dessas políticas da China é possibilitar que os EUA suspeitem de tudo que não sejam as empresas mais pobres em tecnologia, o que amplia o fosso entre os EUA e a China no campo corporativo. 

Tudo isso alimenta os impulsos conservadores já evidentes no tratamento dado por Pequim à endividada incorporadora Evergrande. É digno de nota que o lento desmantelamento de uma das maiores empresas de capital fechado da China esteja sendo orquestrado pelo Estado. Quatro dos sete assentos da comissão formada para administrar os riscos da Evergrande são ocupados por representantes de estatais controladas por Pequim ou governos regionais na província de Guangdong. 

Diante disso, toma forma uma visão do futuro da China. Um descolamento mútuo está enfatizando o movimento da China para dentro e a elevação promovida pelo país de agentes estatais para formar uma fortificação contra vulnerabilidades internas e forças externas desacreditadas. Está sendo construída a Fortaleza China. 

O ímpeto por trás dessa lamentável metamorfose é forte. Mas Pequim deveria se lembrar de que o grande sucesso dos últimos 40 anos foi construído com base em uma política de “portas abertas” ao mundo exterior. O ingresso de investimentos, de tecnologia e de conhecimento externos foi uma poderosa ajuda nessa escalada. Se resistir à essa tendência protecionista, poderá continuar a promover a ascensão do país no futuro. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/12/15/china-se-volta-para-dentro-com-afastamento-dos-eua.ghtml

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