Biden se diz pronto a liderar, mas isso não entusiasma a Ásia

 “Os EUA estão volta”, disse Joe Biden na semana passada, ao apresentar sua equipe de política externa: “Prontos para liderar o mundo, não para nos isolarmos dele.” 

Atrás dele, estava a nata de uma geração de profissionais das relações exteriores. À esquerda, Antony Blinken, o próximo secretário de Estado, assessor de longa data, cuja história com Biden remonta à época em que o presidente eleito presidia a Comissão de Relações Exteriores do Senado. Também estavam Jake Sullivan, indicado para assessor de segurança nacional. 

A missão internacional dos EUA, Biden deixou bem claro, estava de volta às confiáveis mãos do establishment: dos formados em Harvard e Yale e dos think tanks de Dupont Circle, onde ficam os centros de estudo em Washington, com décadas de experiência governamental imbuídas de internacionalismo liberal. 

Ele prometeu reverter a política externa dos “EUA em Primeiro Lugar” da era Donald Trump, que ele chamou de os “EUA sozinhos”. A coação de aliados, os acenos a ditadores, o aval a populistas e o abandono de tratados internacionais acabaram. Em seu lugar, haveria uma volta à política mais tradicional do pós-Guerra Fria, de ênfase no multilateralismo e nos países aliados, com a democracia como princípio organizador central. 

Mas, como em governos anteriores, os altos ideais estão prestes a chocar-se com a dura realidade. Nos quatro anos de Trump, o mundo não ficou parado e, agora, a ordem mundial cada vez mais é ditada pelo poder geopolítico, em vez de pelo idealismo. Os três pilares da missão dos EUA, multilateralismo, alianças e democracia, foram tão solapados que agora podem estar em condição irrecuperável. 

Em nenhum lugar isso vale mais do que na Ásia, onde o “zeitgest”, a atmosfera do momento, para a política externa americana consiste principalmente em competir com uma recém-surgida superpotência. A China está “roubando” a tecnologia das empresas dos EUA, coagindo seus vizinhos e ampliando sua influência mundial, escreveu Biden na “Foreign Affairs”. A solução é “erigir uma frente unida de aliados e parceiros dos EUA para enfrentar os comportamentos abusivos da China […] mesmo enquanto buscamos cooperar com Pequim em outras questões nas quais nossos interesses convergem, como mudanças climáticas, a não proliferação [nuclear], e a segurança global na saúde”. 

Erigir uma frente unida como essa, porém, é uma tarefa complicada. Os EUA sob o comando de Biden “voltam à região com o ego machucado”, disse Kavi Chongkittavorn, colunista e comentarista sobre assuntos do Sudeste Asiático. “Os EUA podem ser mais humildes ou ser mais assertivos. Seja como for, isso terá implicações para a região Indo-Pacífico.” 

Para começar, a abordagem tradicional, de depender das instituições multilaterais, é prejudicada pelo peso cada vez maior da China nessas entidadess, diz Paul Haenle, diretor do Carnegie Tsinghua Center for Global Policy, de Pequim. “O governo Biden terá uma batalha morro acima a partir do Dia Um”. 

Ainda em novembro, a China suplantou os EUA ao assinar a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês), acordo de livre comércio multilateral na Ásia, visto como alternativa, liderada por Pequim, à Parceria Transpacífico (TPP), da qual Trump retirou os EUA em 2017. 

O segundo pilar, o sistema de alianças, também está abalado. Trump retirou soldados americanos da Alemanha e questionou abertamente o comprometimento dos EUA em defender aliados no caso de uma guerra. Previsivelmente, muitos reagiram protegendo-se: o Japão, por exemplo, fez uma aposta paralela, no fortalecimento da cooperação econômica com a China. Em novembro, os dois países concordaram em retomar as viagens de negócios no fim do mês e em seguir adiante com acordos comerciais multilaterais. 

“É a arte da diplomacia, almejar ao mesmo tempo esses objetivos aparentemente diferentes”, disse Ichiro Fujisaki, embaixador do Japão em Washington durante o primeiro mandato de Barack Obama. 

Ao mesmo tempo, há uma queda de entusiasmo com a democracia. A capacidade dos EUA de dar o exemplo foi enfraquecida pela brutalidade policial contra manifestantes pacíficos em cidades nos EUA e pelo caos eleitoral, mas, acima de tudo, pela reação disfuncional de Washington à covid-19. 

A deterioração da democracia e das instituições dos EUA foi uma “confirmação de nossos piores temores sobre as desvantagens do estilo americano de democracia”, disse Bilahari Kausikan, ex-secretário do Ministério das Relações Exteriores de Cingapura. “Aqueles de nós que conhecem os EUA sabem que [o país] é capaz de grande generosidade e de grande intolerância, e que ambas derivam do mesmo conjunto de valores”, disse. 

Apesar do golpe à reputação da democracia, ela continua o eixo central da visão de mundo de Biden e Blinken. “A melhor resposta básica inicial a esses desafios é, na realidade, a democracia. Porque, quando está funcionando, ela é a fundação de nossa força em casa, mas também no exterior”, disse Blinken, em conversa com Walter Russell Mead, em julho. 

Nos textos de Biden e sua equipe, essa ideia é forte. No “Plano Biden para Liderar o Mundo Democrático no Cumprimento dos Desafios do Século XXI”, ele promete realizar nos EUA uma “cúpula pela democracia para renovar o espírito e o propósito compartilhado das nações do Mundo Livre”. 

“Para ganhar a competição pelo futuro contra a China e qualquer outro, precisamos fortalecer nossas vantagens de inovação e unir a força econômica das democracias pelo mundo para enfrentar as práticas econômicas abusivas”, diz. 

Em artigo opinativo no “The Washington Post”, Blinken, em coautoria com Robert Kagan, um importante neoconservador, defendeu o conceito de formar uma “liga de democracias” ou uma “rede cooperativa democrática” para conter a influência chinesa. 

Em 23 de novembro, no Atlantic Council, Dan Fried, ex-embaixador americano, disse que “em seus pontos de vistas centrais, Tony [Blinken] é mais próximo da [ex- secretária de Estado] Madeleine Albright, para quem os EUA são um símbolo pessoal de liberdade, do que da perspectiva mais fria que Obama trouxe para os propósitos de política externa dos EUA”. 

A ideia de uma aliança ou de uma “liga” de democracias continua meio vaga, embora praticamente o mesmo possa ser dito da Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI, na sigla em inglês), também conhecida como Nova Rota da Seda. Pequim, porém, não faz exigências de ordem política para dar sinal verde a relacionamentos externos. Em contraste, no caso dos EUA, condicionar as relações políticas à democracia poderia alienar justamente os países que os americanos gostariam de atrair na competição regional com a China, como Filipinas, Vietnã e Tailândia. 

Países da região já deixam a desejar no espectro democrático. O Vietnã é um governo comunista. A Tailândia teve neste ano protestos em massa pela democracia que foram reprimidos com violência pelo governo. Além disso, a pandemia serviu de desculpa para outros líderes, como os presidentes da Indonésia, Joko Widodo, e das Filipinas, Rodrigo Duterte, se aproximarem mais do autoritarismo. 

O governo Trump pouco fez para impedir o retrocesso de boa parte do Sudeste Asiático rumo ao autoritarismo e até convidou Duterte e o premiê da Tailândia, Prayuth Chan-ocha, ex-líder de junta militar, a Washington em 2017 (Duterte não foi). Mianmar, por sua vez, teve uma transição para a democracia no governo Obama, mas recuou de forma constante para o autoritarismo no governo Trump. 

 “Na região, o que teve melhor recepção pelos líderes regionais [durante o governo Trump] foi o afastamento da promoção da democracia”, disse Ann Marie Murphy, especialista em Sudeste Asiático na Universidade Seton Hall. 

Joshua Kurlantzick, especialista em Sudeste Asiático no Council on Foreign Relations, disse que o foco na China pode implicar abrir mão de parte da agenda democrática. “A necessidade de atrair muito apoio regional no Sudeste Asiático […] pode empurrar democracia e direitos humanos para segundo plano”, disse à Nikkei. 

“Aqueles dias acabaram”: Blinken volta ao governo em meio a péssimas relações entre Japão e Coreia do Sul – apenas mais um problema numa região repleta de mágoas. A China está cada vez mais assertiva nas disputas fronteiriças com Índia e Japão e nas pressões sobre Taiwan; a Coreia do Norte continua volátil; e a diferença entre Hong Kong e China é cada vez menor. 

Blinken é um “solucionador de problemas”, disse Daniel Russel, ex-secretário- assistente de Estado 

Já Sullivan, assessor de segurança nacional, foi bolsista Rhodes e é visto como uma estrela em ascensão no Partido Democrata. Menos prolífico em revistas de política externa do que Blinken, ele é um hábil operador político a quem se credita ter ajudado a negociar o acordo nuclear com o Irã em 2015, do qual Trump saiu em 2018. 

Mas o líder da equipe de política externa de Biden, claramente, é o próprio Biden, que tem mais experiência internacional do que qualquer outro presidente desde George H. W. Bush. Para Fujisaki, ex-embaixador americano do Japão, a indicação de Blinken sinaliza que Biden quer manter a política externa em suas mãos, em comparação a Obama, que chegou à Casa Branca como um relativo novato na área. “É diferente de Obama, que indicou Hillary Clinton e John Kerry como secretários de Estado.”

Os problemas da região mudaram exponencialmente desde Obama. O amplo acordo TPP, que Blinken ajudou a elaborar, seguiu adiante sem os EUA, que na prática abriram mão de sua liderança no comércio regional. E a recente assinatura do RCEP, sem participação dos EUA, é vista como um alerta para Washington: a região agora se sente confortável em assinar um pacto multilateral sem o país. 

Nos últimos anos, os países da região inclinaram-se a depender dos EUA nas questões de segurança nacional e da China nas comerciais. Agora, contudo, cada vez mais veem os acontecimentos econômicos como ganhando precedência em relação às preocupações com a segurança. E, em termos gerais, estão mais preocupados com a influência econômica chinesa do que com a ameaça militar chinesa, segundo relatório recente da Rand Corp., centro de estudos financiado pelo governo americano, com base em entrevistas com mais de 100 especialistas. Para alguns, o foco renovado de Biden e Blinken na democracia deve ser levado a sério, mas não interpretado de forma muito rígida. 

Embora os valores democráticos sejam “uma força multiplicadora para os EUA, especialmente e na forma de ‘soft power’”, Biden e Blinken “não são ideólogos”, disse Russel. “Não se trata de uma jihad pela democracia. A abordagem é prática, baseada na realidade.” 

No que se refere a aliados de longa data, como Japão e Austrália, que compartilham de interesses mais estratégicos com os EUA, mas dependem do comércio com a China, as conversas de uma coalizão democrática “os coloca potencialmente numa posição incômoda”. Mas, “esses países precisam enfrentar a realidade do problema da China”, disse John Lee, ex-assessor de segurança nacional australiano. “Isso não significa que eles precisam ir tão longe quanto os EUA na retórica ou nas políticas. Mas significa que eles têm escolhas a fazer sobre sob que tipo de regras querem estar no futuro”, disse. 

O Japão, enquanto eixo do sistema de alianças dos EUA na Ásia, provavelmente teria boa disposição de participar de uma coalizão democrática. Quando Trump saiu da TPP, o Japão não deixou esfriar o assento de liderança, que até então estava com os EUA, e guiou o tratado até que fosse completado. Ao mesmo tempo, porém, Tóquio procurou ter laços mais próximos com a China, devido às tensões comerciais com os EUA e ao nervosismo com o compromisso americano com a Ásia no futuro. 

Já a Índia, um importante pilar da estratégia regional adotada pelo governo Trump, historicamente hesita em entrar em tratados. O país não apenas renegou o pacto comercial RCEP, dominado pela China, como também manteve-se um pouco afastada da parceira Quad, com EUA, Japão e Austrália. 

“A sensação é que Biden e sua equipe podem buscar mudanças com nuances, mas é improvável que recuariam no apoio que têm proporcionado em comparação à China”, disse Gurjit Singh, ex-embaixador indiano na (Asean). 

O foco renovado dos EUA na democracia trará atrito com os líderes da China. A suspeita deles é que Washington costuma usar a democracia para desestabilizar governos rivais. Blinken, por exemplo, disse à CBS News que o maior fracasso da política externa na era Obama foi a decisão de não intervir de forma significativa na Síria, o que é “algo que levarei comigo pelo resto de meus dias”, disse. 

Caos a partir da ordem: $Olhando mais de perto, dizem alguns especialistas, a convocação de Blinken e Biden pela união das democracias tem impacto mais além da política externa. Pode ser uma resposta à crise em casa, onde os americanos estão mais divididos do que nunca. Em primeiro lugar, o foco na democracia em oposição aos autocratas diferencia Biden de Trump. 

Em segundo, o foco de Blinken na democracia também pode estar voltado a ampliar o consenso político em Washington, trazendo para seu lado um grupo importante de republicanos, os neoconservadores, que deixaram o partido na esteira da eleição de Trump e que normalmente defendem a promoção da democracia e a intervenção no exterior. Kagan, o coautor de Blinken, por exemplo, é um ex- republicano que deixou o partido em 2016. Antes ele havia sido assessor dos candidatos presidenciais Mitt Romney e John McCain. 

Biden deixou claro que sua prioridade é acabar com a pandemia, recuperar a economia e restaurar a confiança no governo dos EUA. Ele provavelmente não fará grandes acordos comerciais em seu primeiro ano porque precisa, primeiro, investir no terreno doméstico. 

Muitos desses objetivos domésticos, desde as mudanças climáticas até a saúde pública, exigem a cooperação da China. Essas duas frentes, inclusive, são áreas nas quais Biden disse que pretende procurar um terreno comum. 

A China, por sua vez, destacou receber bem soluções “construtivas” de problemas, ainda que continue a hostilidade da era Trump. “Trump criou um tipo de consenso bipartidário contra a China. Esse é o desafio que a China terá em termos de como continuar a dialogar com os EUA. Com Biden, é melhor, já que temos uma necessidade urgente de conversar, mas certamente, a estrutura do problema continua”, disse Wang Huiyao, fundador e presidente do Center for China & Globalization, de Pequim. 

Ainda que Blinken esteja enviando uma mensagem pró-democracia, o governo Biden não terá uma abordagem anti-China, disse Clayton Dube, diretor do Instituto EUA-China da Universidade do Sul da Califórnia. Para ele, Biden “não é cego” à forma como a China opera hoje, mas ele não está tentando coibir a China por meio de uma cruzada democrática. Em vez disso, a abordagem de Blinken pode ser assegurar a aliados americanos a disposição dos EUA de trabalhar com eles, enquanto Biden resolve seus problemas interno, como economia a pandemia. 

Vinjamuri, da Chatham House, também destacou que a equipe de Biden não vê a China como um inimigo, ainda que deva assumir uma posição mais dura com Pequim em temas de direitos humanos. “[Os membros da equipe de Biden] não são guerreiros da Guerra Fria”, disse Vinjamuri. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/12/03/biden-se-diz-pronto-a-liderar-mas-isso-nao-estusiasma-a-asia.ghtml

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