Biden e a Europa estão tomando rumos diferentes

O presidente Joe Biden não perderá votos com a decisão da União Europeia (UE) de restabelecer restrições de entrada para os americanos. Mas se trata de um mau sinal. 

A decisão se deve tanto à alta taxa de contágio da variante delta nos EUA quanto à relutância de Biden em igualar a abertura da UE aos viajantes dos EUA. Não custaria muito atender à premiê alemã, Angela Merkel, e aos demais que pediam o fim da proibição de entrada de europeus nos EUA. Mas isso significaria mais uma batalha contra os antivacinas americanos. O fato de ele ter se recusado a levantar a um dedo diz muito sobre a falta de influência da UE. 

Tudo isso começa a fazer a UE se lembrar de Donald Trump. No aspecto de estilo, a diferença entre Biden e Trump não poderia ser maior. Biden é envolvente, faz brincadeiras e normalmente diz a coisa certa. É difícil imaginar Biden empurrando algum líder estrangeiro na hora da foto coletiva ou lançando uma rede de hotéis com o nome de sua família. Mas ser agradável não é o mesmo que ser um bom aliado. Nesse aspecto, os europeus começam a ver a continuidade entre Biden e Trump.

A mais gritante é que Biden não dá muito valor à opinião deles, ainda que dê a impressão de estar ouvindo. Algumas vezes isso é merecido. Muitos líderes europeus reclamaram duramente da forma como Biden retirou as forças militares dos EUA do Afeganistão. Mas, em muitos casos, como o do presidente da França, Emmanuel Macron, as críticas soam vazias. A França retirou suas tropas do Afeganistão em 2014. Apesar disso, o Afeganistão foi uma área em que Biden se ateve ao roteiro de Trump. Os que ainda tinham tropas no país, como o Reino Unido, estão irritados com a falta de consulta. 

Não é a primeira vez que Biden surpreende a Europa – e isso pode ter efeito bumerangue. Em maio, ele anunciou que pediria a suspensão global das patentes das vacinas contra a covid-19 na OMC. Foi uma atitude ousada e inesperada. Mas nasceu morta. Pegou os europeus de surpresa e eles a derrubaram. 

A conclusão é que se tratou de um gesto de Biden para agradar a esquerda americana, para parecer que estava combatendo as grandes farmacêuticas. Seus auxiliares não fizeram a preparação necessária com os líderes da UE, nem o acompanhamento para que a iniciativa tivesse alguma chance. Considere como um truque de propaganda. 

A questão maior é se Biden acredita que precisa da Europa. Suas três prioridades declaradas são a covid-19, o clima e a China. O oceano de distância entre os dois lados do Atlântico sobre como lidar com a China é uma das histórias a ser contada dos oito primeiros meses de Biden na Casa Branca. Os EUA e seus aliados europeus ainda precisam criar uma frente comum convincente em relação à China e não parecem estar a caminho disso. 

O meio empresarial da Europa, em especial o da Alemanha, está mais ou menos na mesma posição em que as grandes empresas americanas estavam há alguns anos: fazendo forte lobby para ter acesso regular ao mercado da China. Há pouco apoio europeu a um desengajamento com a China, a não ser em áreas específicas, como a de tecnologias de alta relevância. 

Isso provavelmente é verdadeiro tanto para a Europa quanto para a região do Indo- Pacífico. A maioria dos aliados dos EUA tem um comércio muito maior com os chineses que com os americanos. Tendo em vista que os EUA de Biden, assim como na época de Trump, são alérgicos a acordos comerciais, e até a acordos na área digital, é improvável que isso mude. 

A prioridade de Biden, de longe, é aprovar seu pacote de gastos internos e ganhar as eleições legislativas em 2022. Fazer acordos econômicos com estrangeiros consome muito capital político e pode sair pela culatra internamente. Isso deverá continuar verdadeiro enquanto Biden for presidente. 

Tampouco surgirão grandes iniciativas climáticas. O governo Biden fez alarde dos investimentos em energia limpa previstos no pacote de US$ 3,5 trilhões. Mas não haverá precificação de carbono nem alta no imposto sobre a gasolina. Isso quebraria sua promessa de não taxar mais a classe média. 

Como resultado, a cúpula climática (CoP-26) de novembro, no Reino Unido, corre o risco de fracassar. O governo britânico vem promovendo promessas do setor privado – um sinal familiar de fracasso político. Biden fala alto sobre o aquecimento global, mas suas ações reais não correspondem. O que ele propôs não aproximará os EUA da meta de cortar as emissões pela metade até 2030. John Kerry, seu enviado climático, viaja o mundo conclamando outros países a fazer o que os EUA não farão. 

Quanto à covid-19, EUA e UE não estão cumprindo as promessas de acabar com o apartheid de vacinas. E não parecem dispostos a se redimir no futuro próximo. É um tema em que os objetivos e as capacidades da UE e dos EUA se casariam bem. Mas a falta de vontade política é compartilhada. Em suma, “os EUA estão de volta”, seja lá o que isso quer dizer na prática. Já o Ocidente, com certeza, não está.

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/09/01/biden-e-a-europa-estao-tomando-rumos-diferentes.ghtml

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