A nova onda regulatória na China

Depois da multa bilionária aplicada à Alibaba e do cancelamento de um IPO gigantesco do grupo Ant no final do ano passado, a lista de empresas chinesas de tecnologia sujeitas a penalidades regulatórias domésticas atingiu a casa da dezena, passando por outras gigantes como Baidu, Byte Dance e Tencent. Em julho, chegou a vez da dona do aplicativo de transporte privado Didi, que teve seu app proibido de receber novos usuários pelos reguladores chineses. 

Agora um novo setor, desta vez de educação, foi pego de surpresa com o anúncio de que empresas privadas de tutoria (responsáveis por aulas privadas de reforço para o ensino básico e médio) devem se transformar em entidades sem fins lucrativos, e estão terminantemente impedidas de captar recursos no exterior. Isso significa o desaparecimento de um mercado estimado em US$ 100 bilhões em anuidades privadas – e uma das causas da desigualdade no sistema educacional chinês. 

As líderes deste setor, Gaotu, New Oriental e TAL Education, cresceram exponencialmente nos últimos anos captando recursos no exterior via paraísos fiscais. Da mesma forma como Alibaba e Baidu, elas usaram estruturas corporativas de entidades de interesse variável (VIEs na sigla em inglês), por meio das quais criaram empresas de fachada offshore e passaram a atrair investidores estrangeiros. 

Por meio de uma entidade de interesse variável, os investidores não recebem participações diretas na empresa, mas, por meio de uma série de contratos complexos, retêm quase os mesmos direitos dos acionistas. Essa configuração vinha sendo amplamente utilizada pelas empresas chinesas para acessar capital estrangeiro, uma vez que o governo é rigoroso quanto à propriedade estrangeira de suas empresas estratégicas. Pequim nunca endossou VIEs como instrumentos legais do mercado financeiro chinês, mas parecia fazer vista grossa. Agora, é fácil prever que as VIEs em todos os setores enfrentarão regulações rígidas. 

Está claro que Pequim não quer setores de tecnologia e de educação dependentes de IPOs nos Estados Unidos e de veículos financeiros nebulosos para se desenvolver. Acima de tudo, as lideranças chinesas não querem que estes setores estejam sujeitos às manobras regulatórias norte-americanas ou representem vulnerabilidades estratégicas em meio a uma guerra cibernética e por controle de dados que avança rápido. 

Pequim também sinalizou que prefere investidores colocando dinheiro em empresas de manufatura de alta tecnologia em detrimento às empresas de serviços online. Enquanto as ações das cinco maiores empresas chinesas de internet perderam um terço do seu valor entre meados de fevereiro até o final de julho (todas empresas de software), as empresas do índice de tecnologia da informação onshore (principalmente fabricantes de hardware) ganharam 33% segundo a Gavekal Dragonomics. 

É neste sentido que o endurecimento regulatório fecha muitas pontas interligadas. O big data é um grande front de batalha na disputa EUA-China e representa tanto uma oportunidade de liderar as tecnologias disruptivas da chamada Quarta Revolução Industrial quanto uma fonte de vulnerabilidade estratégica. Não à toa, a proibição para a Didi cadastrar novos clientes veio dias depois de um IPO de US$ 4,4 bilhões nos EUA. Em meio a uma guerra cibernética, as operações de empresas como a Didi podem facilmente se transformar em uma porta de entrada. 

O Partido Comunista quer suas big techs trabalhando para o projeto de liderança tecnológica da chamada indústria 4.0, incluindo sistemas cibernéticos, internet das coisas, redes e inteligência artificial. E, ao mesmo tempo, quer dirimir as vulnerabilidades estratégicas que acompanham suas aplicações em cidades inteligentes, tráfego inteligente, manufatura inteligente, armas inteligentes e no processo de transição energética para um mundo menos dependente de carbono. 

O controle agora estrito sobre a educação privada também é uma tentativa de diminuir a influência estrangeira no sistema. Todas essas grandes empresas do setor ampliaram enormemente seus serviços online durante a pandemia, sobretudo fazendo uso de professores estrangeiros para o ensino do inglês. 

Anualmente, cerca de 11 milhões de jovens chineses prestam o famoso exame Gaokao para tentar acesso às universidades. O governo chinês conseguiu universalizar o acesso ao ensino básico via educação pública gratuita para os primeiros nove anos. No entanto, alunos com tutores privados (enormemente frequentes na China) e que moram em cidades mais afluentes, como Pequim ou Xangai, e em bairros ricos (onde as escolas são melhores) têm muito mais chance de ingresso em uma boa universidade do que um chinês médio. 

Até aqui, não está claro, entretanto, como o sistema de educação irá mudar estruturalmente exclusivamente com o fim das empresas privadas de tutoria. O governo anunciou que busca reduzir os gastos com educação para estimular o crescimento demográfico. No entanto, se nenhuma outra mudança acompanhar, o risco é o crescimento do mercado de tutores freelancers, mantendo o sistema de educação desigual. 

Busca por liderança em tecnologias disruptivas da próxima revolução industrial, controle sobre dados, segurança cibernética, e restrições à penetração do capital externo via instrumentos financeiros nebulosos são objetivos claros até aqui do aperto regulatório. É uma nova era da disputa entre grandes potências redefinindo a acumulação de capital na China. 

Isabela Nogueira é professora do Instituto de Economia e do Programa de Pós- graduação em Economia Política Internacional (PEPI) e coordenadora do LabChina, todos da UFRJ 

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-nova-onda-regulatoria-na-china.ghtml

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