Por Pedro de Santi.
No último dia 18, tive uma experiência privilegiada. Assisti à Ópera Siegfried , de Richard Wagner no Teatro Alla Scala, em Milão. Regência de Daniel Baremboim. Em um único momento, pai, tio, análise, origem, Gaza, exclusão e generosidade invadiram minha mente. Não necessariamente nessa ordem, porque medo e esperança ocuparam o espaço mais nobre.
Em termos pessoais, amo música em geral e óperas especificamente. Ao entrar pela primeira vez no teatro, lembrei-me de meu pai e de um tio, já falecidos, que sonharam em conhecer o teatro. Eles nunca realizaram este sonho; em parte por sua condição financeira, em parte por simplesmente não se permitirem este tipo de prazer. Na realidade, eles sequer realizaram o sonho de conhecer a Itália, de onde veio meu avô, em 1899, com um ano de idade. A família se estabeleceu em São Paulo, no Belém, no começo do século passado e viveu em torno da loja “Cristais de Santi”. Sua especialidade: lapidação manual de copos e jarras. Meu tio trabalhou por toda a vida na loja, mas chegou a ser cantor e fazer pequenas figurações no Teatro Municipal. Diz a lenda familiar que ele esteve em cena como figurante com a Maria Callas!
Assim, dentro do teatro sentia-me realizando um desejo transgeracional, trazendo os dois comigo. Ao mesmo tempo, por isto mesmo, tinha aquela sensação clássica de estar fazendo algo proibido, como se eu não tivesse o direito de estar lá. Eu me movia como um caipira desajeitado naquele ambiente elegante. No estado de perturbação em que estava, enviei mensagens para minha mulher, uma de minhas irmãs, minha filha mais velha e alguns amigos com quem eu pudesse compartilhar o sentimento.
Papo de analista, coisa que sou. Custa muita análise permitir-se bancar determinados desejos.
Mergulhado nesta viagem pessoal, acompanhei já de meu camarote as pessoas que chegavam, o delicioso som dos instrumentos sendo afinados, o piscar das luzes dando o sinal de que o início se aproximava. Criança feliz.
Quando entrou o maestro Baremboim e os sopros wagnerianos começaram a soar, deu-se um estalo e saí de meu umbigo. Ele é um argentino de origem judaica que tem se empenhado em tocar em orquestras compostas por israelenses e libaneses. Por este esforço, foi um dos homenageados na abertura dos jogos olímpicos de Londres, há poucos meses. O Scala foi praticamente destruído por bombardeios na segunda guerra mundial. O compositor romântico do século xix Richard Wagner (e suas óperas que evocam a mitologia nórdica mesclada com a grega e a cristã) foi um ícone do nazismo. De uma só tacada, fui devolvido às notícias do dia.
Naquele mesmo dia 18, a faixa de Gaza era novamente uma ferida aberta. Análises políticas nos jornais davam conta de que a agenda do conflito era idêntica a de 4 anos atrás: depois das eleições nos Estados Unidos, antes das eleições em Israel. Nos dias seguintes, os jornais exibiam fotos chocantes de um jovem arrastado por uma moto por ser suspeito de colaborar com Israel. As imagens geram repugnância contra os libaneses executores, mas a contabilidade de mortos revela uma desigualdade absoluta de poder. Tudo difícil de compreender. A única certeza é de que a cada novo evento destes renova-se o ódio e enraiza-se o conflito por mais gerações.
As ressonâncias prosseguiram. No balcão em que estava, à minha frente se sentou um casal de franceses já idosos, atrás de mim, um casal japonês. Eu comprei o ingresso pela internet; foi caro, mesmo em euro. Para poder ver o palco, precisei ficar em pé e me espremer num canto do balcão; o casal japonês simplesmente não podia ver o palco. Foram embora no primeiro intervalo. Brasileiro que sou, procurei dar um jeitinho e me sentar em um lugar melhor para o segundo ato; consultei um funcionário, que confirmou que o teatro estava lotado. Conformado, voltei ao meu banquinho. Logo antes do recomeço, o mesmo funcionário veio ao camarote me oferecer um lugar melhor. Sentei-me então ao lado de um jovem russo, que veio a Milão para assistir à opera. Conflito, exclusão e generosidade se encontram em toda parte.
Quanto à opera em si, Siegfried é a terceira ópera da tetralogia O anel do Nibelungo. Foi uma bela montagem de uma obra difícil, com pouca ação e longos diálogos. Ao final, o até então inabalável herói nórdico Siegfried conhece o medo através do amor a uma mulher. A mulher, que perdera sua condição de Valquíria (na ópera do mesmo nome, a segunda do ciclo), deixa sua condição de deusa e se entrega ao amor. Anuncia-se a peça final: O crepúsculo dos deuses.
Para nós que conhecemos o medo há muito tempo, assistir Daniel Baremboim reger Wagner no Teatro Alla Scala foi, afinal, uma experiência complexa, cheia de ressonâncias e até (quem sabe?), esperança.