Pavões misteriosos

Cesar Veronese, Professor do CPV Vestibulares

“Pavão Mysteriozo” (com essa grafia mesmo, entre o arcaico e uma dubiedade ibérica) foi uma canção de enorme sucesso gravada no ano de 1974 pelo cantor cearense Ednardo. O nome pluralizado em português moderno intitula agora um livro, do jornalista e diretor de TV e cinema André Barcinski, que acaba de ser lançado na FLIP.

A proposta é apresentar um período importante e pouco documentado da história da música pop brasileira, compreendido entre meados dos anos 70 e o início dos 80. O autor procura responder à pergunta: por que essa década produziu um número tão significativo de artistas que lançaram discos antológicos, e logo depois essa produção entrou em declínio? Não à toa, a investigação é delimitada pelas duas maiores explosões de vendagem de um disco de estreia na história do mercado fonográfico brasileiro: os discos SECOS & MOLHADOS (1973), do grupo homônimo, e VOO DE CORAÇÃO (1983), de Ritchie, que venderam, respectivamente, 1,4 e 1,2 milhão de cópias.

Entre as muitas e interessantes questões levantadas pelo autor, o espaço conquistado pela música pop nos anos 70 no Brasil reflete um investimento das gravadoras no gosto do público jovem, juntamente com o milagre econômico que alavancou uma verdadeira indústria fonográfica no país. O declínio, por sua vez, envolve fatores como o fim da era disco (explosões artísticas de massa tendem a desaparecer com a mesma rapidez com que surgiram), a crise do petróleo e os seus desdobramentos na economia (afetando o comprador de discos) e também à intervenção cada vez maior dos diretores comerciais das gravadoras, que passaram a ter mais poder que os diretores artísticos.

Para além dessa tese maior, PAVÕES MISTERIOROSOS merece a leitura (sobretudo das novas gerações) por tocar em outras questões cruciais da época retratada, como o radicalismo e o posterior afrouxamento da ditadura militar. É assim que entendemos o porquê de muitos discos de artistas nacionais da época exibirem na contracapa a frase DISCO É CULTURA. Era uma exigência do regime, que contemplava com a isenção de impostos as gravadoras que lançavam trabalhos de artistas nacionais. Entendemos também o radicalismo das então chamadas “patrulhas ideológicas”, que, em 1976, acusaram o cantor e compositor Benito de Paula de reacionário e defensor da ditadura, quando ele lançou a música “Tudo está no seu lugar”. “Foi uma acusação burra”, diz o cantor, “ninguém veio me perguntar o que eu achava da ditadura. A letra era sobre a minha alegria naquele momento, depois de dar uma casa de presente para a minha mãe. Não tinha porra nenhuma a ver com política”.

No capítulo “O brilho da cidade” Barcinski traça uma breve porém ótima síntese da indústria do narcotráfico na América Latina, quando o tirano Hugo Banzer, amparado por mercenários treinados por Klaus Altmann (na verdade Klaus Barbie, o ex-carrasco nazista, conhecido como “o açougueiro de Lyon”, responsável pela tortura e execução de 14 mil judeus) chega ao poder e estabelece a primeira “narcocracia” no mundo. Para criar uma clientela, a Bolívia comercializa então cocaína “de boa qualidade e barata” no mundo todo. As cidades brilham com o pó e muitos donos e programadores de emissoras de rádio e TV no Brasil exigirão pó para promover as músicas de lançamento.

Fechando a cauda do pavão, o autor arrola alguns depoimentos sobre a carreira meteórica do cantor Ritchie, que em pouco mais de um ano passa de artista pop número um para o ostracismo. Barcinski não pontua, mas colhe, entre os testemunhos, o de Tim Maia, que, como Lobão, nunca teve medo de por a boca no trombone: “(…) Um dia, Ritchie foi cumprimentar Tim Maia depois de um show no Canecão. O camarim estava lotado. Assim que viu Ritchie, Tim gritou: Agora todo mundo pra fora, que vou receber meu amigo Ritchie, o homem que foi derrubado da CBS pelo Roberto Carlos”.

Se na canção de Ednardo tudo é mistério no voar do pavão, talvez nem tudo o seja na história do pop brasileiro. E talvez não seja sem motivos que o Rei esteja sempre processando biógrafos que tentam contar sua história. PAVÕES MISTERIOSOS é uma leitura deliciosa e essencial tanto para quem viveu como para aqueles que não viveram a década de 70.

Para ler outros textos do Professor Veronese, acesse blog CPV (link Dicas Culturais do Verô).

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