Flora Tortorelli Canal
A chegada a Paraty é tão tortuosa quanto os caminhos do centro histórico. Estes caminhos nos forçam a esquecer a pressa e convidam aos encontros humanos.
Computadores, celulares, relógios ficaram esquecidos no quarto da pousada, mas os sentidos foram sensibilizados conforme entrava no ritmo próprio da Flip. A primeira tarefa seria fazer uma pesquisa de campo: passear sem rumo pela cidade e observar. O mar, o vento úmido correndo pelas ruas propositalmente tortas, as portas coloridas e as janelas sempre convidativas a uma espiada. Ver as árvores de sombras generosas, as bandeirolas arrepiadas, imaginar o nascer do sol visto pelas varandas coloridas no alto das casas.
É inverno, mas o sol se faz presente quase de propósito.
A que me devo atentar? Como será o decorrer da semana? O ronco da barriga avisou que o sol estava no meio do seu curso e interrompeu minha reflexão.
Não demorou para encontrar boa companhia para um fim de tarde na praça que, entretanto, não pôde se estender demais, logo iríamos ouvir atentos as palavras que davam início a literatura em festa.
Agnaldo Farias parecia saber que no escuro da plateia haviam ouvidos inquietos pela arte e nos presenteou com uma verdadeira aula de semiótica sobre o homenageado da festança, Millôr Fernandes. Nos confirmou o que sempre desconfiei: a linguagem visual é igualmente importante a linguagem intelectual. Ufa, a imagem, então, não deve ser negligenciada. A noite termina cheia de risadas trazidas pelo muito bem humorado Jaguar, camarada de profissão de Millôr e seus discípulos Hubert e Reinaldo.
A semana corre com habilidade sobre o tempo e a cada dia são novos os encontros. Das mesas literárias às aquarelas a beira do canal, passando por um papo valioso com os designers da Casa Azul e pelas visita as exposições lindamente montadas na Casa da Cultura e Casa do IMS. Muitos foram os insights anotados no caderno de viagem, lado a lado aos rabiscos daquele cenário.
Fui atingida pelo tiro silencioso da literatura, como disse Vladmir Sorókin; duvidei de Paulo Mendes da Rocha e Francesco Dal Co quando disseram que Paraty era o impossível nascido da impossibilidade; sorri ao ouvir aquele papo de botequim com Cássio Loredano, Claudius e Sergio Augusto dizendo que Millôr não queria mudar o mundo, mas sim deixá-lo mais engraçado; me identifiquei com Claudia Andujar que se sentiu pela primeira vez em casa quando, longe de sua terra natal, encontrou sua identidade; enchi os olhos de lágrimas quando ouvi o depoimento de Marcelo Rubens Paiva sobre o golpe de 64.
A cidade está cheia. Murmurinhos intrigantes estão em todas as esquinas. As crianças sentam a beira das árvores para ler, os jovens passeiam com o olhar atento ao redor, as mulheres, sempre elegantes com seus batons, conversam com as amigas, os senhores e seus Panamás bebericam uma cachaça sentados à mesa. Eu não era nenhuma daquelas pessoas, mas me sentia naturalmente parte desse fenômeno chamado Flip.