Por Pedro de Santi
O diretor italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975) tem uma obra curta e impactante. Quase 30 anos depois de sua morte, seus filmes ainda produzem o efeito de estranheza pretendido pelo diretor. Talvez isto aconteça pelo fato de que o mundo que ele tratava de denunciar venceu. Com isto, sua crítica permanece atual e necessária.
Em muitos de seus filmes, ele produz um encontro estratégico. De um lado, evoca textos clássicos da cultura, como “Medeia”, “O evangelho de São Matheus” (no qual usa a música maravilhosa de Bach), “O Decameron”, entre outros. De outro, é uma característica sua o uso de atores amadores, a filmagem em locações naturais e ainda não atingidas pela Modernidade, como a Sicília e o norte da África. O efeito é o de estarmos em contato com algo muito primitivo e distante da estética cinematográfica dominante.
Das entrevistas que deixou (vejam o documentário “Via Pasolini”, da Rai, disponível no Youtube) ele diz que considera que o cinema é uma linguagem na qual pretende mostrar a realidade das histórias usando esta outra realidade; pessoas e locações.
Ao avaliar o início de sua vida artística, ele costumava evocar o fato de que escreveu seu primeiro livro de poesia aos 18 anos, e o fez no dialeto da região onde nasceu. Percebeu então o repúdio que sofreu por isto; desde a metade do século xx a Itália tendia a homogeneizar o idioma nacional, aniquilando os dialetos regionais e impondo o padrão de Milão, o norte rico.
Este teria sido seu primeiro encontro com a Modernidade capitalista e sua máquina de aparar diferenças e massificar a mediocridade, disfarçando-se como discurso da técnica e do progresso. Este confronto paradigmático deu a tônica de sua obra: mostrar como o avanço da burocracia e da padronização é inimigo da vida.
Com a morte de um irmão na Segunda guerra, viu-se definitivamente trazido para a realidade social e filiou-se ao Partido Comunista Italiano. Lá, afinal, também acabou não sendo bem acolhido, inclusive por ser homossexual e ter se envolvido em episódios de desacato à moral pública.
Alguns dos filmes de Pasolini foram catalogados como pornográficos, o que o desagradou muito. A sexualidade que transpira em seus filmes não é estetizada ou dedicada a atrair a atenção do público. Ela é a presença de corpos desejantes, muitas vezes grotescos, comuns. O provocativo não é o sexo, mas sua expressão natural e variada, sem buscar pela perfeição estética. Pasolini faz cinema como política e o uso dos corpos e da sexualidade é sua forma de transgressão.
Num artigo chamado Tetis, de 1973, sintetiza esta opção: “Em resumo, pois: ao fim dos anos sessenta, a Itália entrou na era do consumo e da sub-cultura, perdendo assim toda realidade, a qual sobreviveu quase que apenas no corpo e precisamente no corpo das classes pobres”. Esta foi a tônica de sua “trilogia da vida” (composta pelos filmes “O Decameron”, “Os contos de Canterbury” e “As mil e uma noites”, filmados entre 1970 e 73). Pouco depois, decepcionou-se com a recepção dos filmes e considerou que a sexualidade também não escapara da massificação. Talvez isto o tenha levado à radicalidade de seu ultimo filme, sobre o qual falaremos abaixo.
Em 1967, Pasolini encarou uma empreitada de peso: filmar a tragédia Édipo Rei. Além de todos os recursos recorrentes a que nos referimos, Pasolini faz algo genial. Presumindo que boa parte do público conhece a história, ela interage com ela: em alguns momentos centrais, substitui falas, o que produz um efeito polifônico. O expectador enuncia internamente a fala clássica e ouve no filme algo que soa como uma intepretação. Por exemplo: quando Édipo se coloca ante a esfinge, não ouve “Qual é o animal que pela manhã anda com quatro pernas…”, etc; mas a esfinge lhe diz “Qual é o enigma sobre sua origem?”. Ao invés de Édipo responder ao enigma e a esfinge se precipitar no abismo, Édipo fica enfurecido e a arremessa. Então ela diz: “o abismo em que você me joga está dentro de você!”. Por esta passagens e muitas outras, pode se ver que o Édipo de Pasolini é mais freudiano que o de Sófocles.
Jocasta foi interpretada pela diva Silvana Mangano e Édipo, por Franco Citti. Além de ter participado de outros filmes de Pasolini, ele pode ser visto no primeiro e terceiro filmes da trilogia “O poderoso chefão”, como um empregado leal da família Corleone; Coppola também buscou na Sicilia suas imagens de origem mítica.
O próprio Pasolini atua no filme, como já o fizera em “O Decameron”, quando interpretou Giotto. Em “Édipo rei”, ele representou um homem que se apresenta a Édipo para pedir que ele solucionasse a praga que assolava Tebas. Com porta-voz do povo ante o rei, Pasolini encarna o corifeu (o chefe do coro que acompanhava as peças no teatro grego e que intermediava a relação entre os atores e o público). Os dois papéis que escolhe para si contam também sobre como representa a si mesmo: Giotto, que introduziu a dimensão autoral à arte; e o porta voz das classes baixas na intermediação com as classes altas.
Em 1975, Pasolini filmou sua obra mais provocativa: “Saló, os 120 dia de Sodoma”, a partir da obra de Sade. A perversão da política e da sexualidade são levados ao limite do suportável, ainda que na memória popular a imagem mais repugnante seja a da coprofagia (pessoas comendo fezes).
Naquele mesmo ano, foi brutalmente assassinado. A princípio, um garoto de programa confessou o crime e cumpriu pena por ele; mas há suspeitas de que isto só tenha acobertado um crime político. Tragicamente, a morte violenta de Pasolini parece coerente com sua obra.
SERVIÇO: O Cineclube ESPM exibirá o filme “Édipo Rei” de Pier Paolo Pasolini, com uma apresentação de Pedro de Santi na quinta-feira, dia 26/09, às 13:40, no Auditório Victor Civita, ESPM.