Os filhotes da ditadura e seus filhotes

Pedro de Santi

Esta expressão era usada nos anos 80 e 90 para distinguir aqueles nascidos entre 64 e 85. Os filhotes da ditadura têm hoje algo entre 30 e 50 anos. Os mais velhos, nascemos depois de Juscelino e da Bossa Nova, assistimos ao nascimento da MPB politizada e sofisticada poeticamente para driblar à censura. Incluo-me entre os que viram parentes ativos na resistência política e levados a se exilar fora do país nos anos 70.

A geração que recebemos hoje na graduação nasceu há algo em torno de 20 anos. Eles conhecem uma única moeda e três presidentes, todos eleitos democraticamente. Quando nasceram, os pensadores da direita estavam calados, constrangidos pelos destinos do golpe militar que há pouco de fato se despedira. Durante quase duas decadas, a própria expressão “intelectual de direita” pareceu uma contradição em termos.

Boa parte da população que apoiara o golpe se identificava agora com o retorno democrático e procurava deixar de lado seu apoio anterior. Mas sabemos que esta população era e é arraigadamente conservadora. Do centro para a esquerda, todos tinham a esperança em que grandes transformações institucionais e éticas.

Há vinte anos, quando nossos alunos atuais nasceram, havíamos nos livrado do Collor. O primeiro presidente eleito depois da ditadura calhou de ser um corrupto simplório (ou seja, sem apoio político), e foi deposto em meio a um movimento que dava continuidade ao movimento pelas eleições diretas, em meados dos anos 80. Os filhotes da ditadura se sentiam redimidos, então.

Vinte anos depois, é um governo derivado da esquerda que está na berlinda. Intelectuais de direita já voltaram a se expressar em voz alta, o que é melhor.

Práticas antigas da politica vêm sendo mantidas pelos governos que seguiram e criticavam os governos militares. E algo surpreendente tem acontecido. Parecia inconcebível a nós, filhotes da ditadura, que algum dia o golpe pudesse ser ressignificado como algo positivo. Mas, nesta comemoração de 50 anos, não faltam revisões a elogiá-la, considerá-la inevitável e tentar reduzir a violência de Estado a situações patológicas isoladas. Em depoimentos à Comissão da verdade, ouvimos generais se referindo com verdadeiro orgulho e sentimento de dever cumprido ao justificar o golpe e seu recrudescimento em 68.

Hoje, não há uma versão dominante e única da história a ser contada. Vá lá, é melhor assim, também. A ditatura é sempre uma vitória do “um”, mesmo que seja um dos nossos. Assim, vale pagar o preço de engolirmos a diferença, mesmo que nos pareça irracional e ofensiva.

O período pós-ditadura trouxe uma estabilidade benvinda, e uma grande dissolução de utopias. Ficar sem ilusões e cair na real tende a ser até bom, o medo é que elas renasçam justamente na direção de quem bota a tropa na rua. Por outro lado, sabemos que o equivalente atual das ditaduras são o poder de controle da mídia e da opinião pública, o monitoramento constante de nossos movimentos reais e virtuais (e bancários). No momento, tenho mais medo dos “nerds” criadores de mídias sociais que de um golpe militar.

Os filhotes dos anos 90 não tem como saber em primeira pessoa o que foi aquela experiência. Eles não imaginam o que seja ter um parente desaparecido, cantar o hino em clima nazi toda manhã antes da aula e ver antes de cada filme na tv e cinema o documento assinado por uma certa Solange: uma liberação pela censura federal. E eles não podem imaginar que os hoje inimigos- ambos andando de chapa branca- PT e PSDB já foram importantes aliados contra a ditadura e, mais que isso, já encarnaram a esperança e a mudança.

Em Junho do ano passado, os filhotes dos filhotes da ditadura (sempre acusados de alienados) foram em massa para as ruas. Como não há um inimigo bem definido, suas demandas eram difusas. Eles conheceram a força da repressão e o movimento cresceu em reação a ela. Entre a conquista de algumas bandeiras, a violência infiltrada no movimento e as férias de julho, nosso velho e indeciso gigante cochilou de novo.

50 anos do golpe de 64; 64 anos desde a última copa no Brasil. Que os resultados de ambos não se repitam.

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