O nirvana dos incriticáveis

Por Felipe Leal Alves Xavier, professor do Anglo Vestibulares

Incorre na falácia do nirvana o argumento que compara uma solução realista a uma solução ideal e, com base nisso, recusa a primeira. Muitas vezes, é o caso de formulações como “isso não vai na raiz do problema” ou “não se pode tapar o sol com a peneira”.

De fato, parece bastante razoável criticar governos quando, em vez de atuar nas causas do problema, eles fornecem soluções paliativas e provisórias. Mas, quando vejo esse tipo de argumento em discussões sobre as cotas ou sobre a vinda de médicos estrangeiros para atuar em áreas carentes, penso se essa é a origem verdadeira dos questionamentos.

Se for, acredito que o radicalismo deveria se estender para outras áreas, e os mesmos que falam em transformar as causas do problema deveriam também ter horror a propostas como a redução da maioridade penal, algo aparentemente imediatista e feito para ludibriar a opinião pública. As mesmas pessoas deveriam ainda, com igual indignação, lutar por uma redistribuição de renda muito mais efetiva do que a feita pelo Bolsa Família.

Como não acho que isso acontece, me parece bastante plausível que, muitas vezes, o radicalismo seja apenas discurso. Os “radicais” não estão preocupados com a saúde dos brasileiros dos ditos grotões, dos quais, aliás, falam com notável desconhecimento e abundantes preconceitos. Como também não estavam preocupados com a educação pública, tanto que só vi protestos “pela educação” na Paulista depois da ameaça de redução de vagas na universidade para quem veio de escola particular.

Arrisco, então, uma hipótese: a reação, muitas vezes raivosa, vem de uma intolerância a crítica. Quando aparece qualquer medida ou ideia ou proposta que critique ou pareça criticar comportamentos de pessoas de elite, segue-se uma onda de indignação. No caso dos médicos, o projeto da vinda de profissionais estrangeiros em alguma medida questionou o seu corporativismo, o tipo de formação que têm, os seus objetivos, a diferença entre suas condições de vida e a dos demais brasileiros… Sei lá. O fato é que a reação foi quase violenta. Quanta sensibilidade! Se estamos tão seguros do nosso comportamento exemplar, ou pelo menos tão humano, para que perder a cabeça?

Lembrei de um artigo do sociólogo Jessé de Souza falando do que diferenciaria as elites brasileiras (http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,pensamento-mediano,1033176,0.htm). Seguindo a regra geral, aqui também as pessoas chamam de “mérito” o que na verdade deveriam chamar de herança. Até aí, somos parecidos. A diferença é que teríamos uma proteção para nossa consciência, que nos permite aguentar as abominações morais com as quais convivemos: a miséria, a desigualdade, a exploração do trabalho, as injustiças diversas, a violência (que, quando atinge os mais pobres, não incomoda)… Nós suportamos tudo isso por termos aprendido que é possível pôr a culpa no governo. Mas, vejam, toda a culpa mesmo, não só uma boa parte dela. Não pago direito a minha empregada? Sonego impostos? Pago mensalidade para milícia que assassina adolescentes encrenqueiros? Bom, você queria o quê? O governo não faz a parte dele… Ainda bem que temos a eficiência do mercado!

Assim, quando somos chamados a parar e pensar, pelo menos um pouco, na responsabilidade que cada um tem, algo estranho parece estar acontecendo… Saímos da zona de conforto. Não parece mais possível simplesmente pôr a culpa no governo. Agora, nós também somos vitrine. Alguém pode nos responder e nos questionar, assim como questionamos o governo e o país em conversas de jantar e posts de Facebook, repetindo desfiles de chavões que se supõem ensaios refinados e terminam com algo como “o Brasil não tem jeito mesmo”.

O estranhamento talvez explique duas reações típicas a medidas ou ideias que incomodam. A primeira é, justamente, a tal falácia do nirvana, excelente companheira para o antipetismo, que gosta de falar em “populismo” e “compra de voto no Nordeste”.

A segunda é a típica falácia ad hominem: não derrube a tese, derrube quem a defende. E aí vêm acusações como “queria ver se fosse você”, ou, melhor ainda, “você não pode falar nada, pois também participa da mesma sociedade, e não se comporta como fala que deveríamos nos comportar”. Essa segunda, tipo de ad hominem que a tradição chama tu quoque, ou “você também”, é muito reveladora: mostra que, no fundo – lá no fundo mesmo – mexe-se na sombra uma renitente chama de consciência, que insiste em não se apagar. Ela nos avisa que não podemos falar “estamos certos”, e, por isso, falamos: “você também está errado”.

Quando alguém me vem com uma dessas, fico feliz pela confissão, e não me importo de concordar, pois acho que, como dizem, vivemos num país livre: todos podem criticar e ser criticados.

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