Não deixa ela chorar

Pedro de Santi

Foi esta a primeira frase dita por minha mulher ao pediatra, imediatamente após o parto de nossa filha. Ele a trazia nos braços para perto da mãe após os primeiros cuidados. O pediatra respondeu: “olha o que me espera, não deixe ela chorar!”

Mas não era a ele que se destinava aquela demanda, era (e segue sendo) a nós mesmos, os pais, e à própria filha. Acrescente-se que minha mulher é obstetra e sabe melhor do que ninguém que o choro do recém nascido é um bom sinal e sua falta, preocupante.

Um dos sentidos da responsabilidade de se ter filhos é lidar com isto: prepará-los para viver no mundo, acolher e frustar em tempos e medidas distintas. Medidas e tempos que não controlamos, simplesmente. A dor da gente a gente carrega, as dores dos filhos doem mais: acabamos por nos sentir culpados por elas, mesmo sabendo que são inevitáveis. Sentimos a dor como nossa e queríamos socorrer os filhos como sentimos não termos sido socorridos em nossa própria infância. Talvez preferíssemos só acolher e agradar, mas com o próprio desenvolvimento da criança vai se impondo que está na descrição do emprego frustrar, estruturar, não controlar todo o processo. Ser pai e mãe faz a gente ressignificar um bocado as ideias de que nossos pais falharam conosco.

Na noite anterior à escrita deste texto, nossa filha chorou muito, e de um jeito que nunca havia chorado. Choro longo e doído. Depois de uma linda festa pelos seu aniversário de 4 anos, talvez a primeira que ela realmente aproveitou: choro. Desconcertante.

Na volta para casa, adormeceu nos braços da mãe. Uma hora depois, já na cama, ouvimos ela chorar. Em primeiro, minha mulher foi atender, com a continuidade anormal do choro, eu também fui. Ela chorava dormindo e chamava pela babá, demitida por nós há poucas semanas e presente na festa como convidada.

Nas semanas anteriores, está falta não havia sido enunciada. Ela era perceptível por uma grande irritabilidade e insegurança nas rotinas novas da escola. Todos percebíamos que era disto que se tratava, mas agora estava dito. O choro certo para a dor certa. Mas presenciar a dor da separação num filho deixa a gente muito aflito e com vontade de remediar, de fazer a dor passar. Certamente, não se trata da primeira separação ou perda pela qual ela passou, mas esta acontece num momento específico em que a criança ainda é pequena mas já consegue dar uma forma articulada ao que sente. Estamos lá de cara com o “não deixe ela chorar”.

O que fazer então? Reverter a decisão e recontratar a babá naquela hora mesma (pelas duas da matina) e pedir para ela vir correndo? Água de côco (aquele golpe baixo ao qual recorremos para dar algo docinho para a criança e fazê-la parar de chorar, pelo simples fato de que a boca estará ocupada)? Colo de um, colo do outro?

Fizemos, por fim, o que sinceramente podíamos. Ficamos ao lado dela. Minha mulher deitada com ela, espremidas na cama. Eu no chão, ao lado. E paramos de brigar com o fato e deixamos ela chorar, com duas constatações: uma, os pais não podem evitar muitas das dores dos filhos, aliás, são eles que infligem boa parte delas; outra, eles precisam reassegurar à criança que ela possa chorar sem que se aflijam e se desorganizem. Se for o caso, a gente chora também, mas não desmancha. “Tamo junto”.

Definitivamente, não temos como atender plenamente às demandas dos outros (ou eles às nossas), por mais que nos sintamos convocados a isto. Mas, se não conseguimos satisfazer ao outro, podemos ao menos lhe prestar companhia e empatia. E, na medida em que nossa própria angústia permita, não piorar a situação de sofrimento inicial, acrescentando a ela o desdobramento de dívidas e culpas de um com relação ao outro.

Naquele estado sonolento em que encontrava, fiquei divagando, doído com a dor de minha filha, lembrando também das formas diferentes que a experiência de separação tomou e toma para minha filha mais velha.

Passado algum tempo, minha mulher começou a cantar a melodia que inventou para ninar a filha, antes mesmo de ela ter uma babá. Música, é claro! Bem bonito e na voz da mãe. Em alguns minutos, ela dormiu; e então foi minha vez.

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