Frankenstein e a fabricação do outro

Guilherme Mirage Umeda

“Pretendes matar-me. Como ousas brincar assim com a vida? […] Lembra-te, sou tua criatura; eu deveria ser teu Adão, mas em vez disso sou o anjo caído, afastaste-me da alegria por delito algum. Em todo lugar eu vejo alegria, da qual eu, sozinho, estou irrevogavelmente excluído. Eu era benevolente e bom, a miséria me tornou um monstro. Faz-me feliz e eu serei novamente virtuoso.”

Parece-me desnecessário argumentar em favor da grandeza da magnum opus de Mary Wollstonecraft Shelley. Afinal, Frankenstein assegurou, em pouco mais de 200 anos, um lugar inabalável nesse repositório de símbolos humanos que é o imaginário. Poucas figuras da literatura são tão imediatamente reconhecíveis, ainda que a profusão de imagens lhe construa silhuetas tão diferentes entre si. Em comum, a força de uma personagem inquietante e esquiva, que, como um raio, necessita apenas de um breve instante para derramar sua carga terrível e inescapável de rancor.

Foi por conta dessa importância seminal que sugeri Frankenstein como tema do 5o encontro do Livro Adentro. (Livro Adentro é um grupo de leitura constituído em 2014 por mim, junto a estudantes de graduação em Design da ESPM. É uma comunidade aberta a todos os interessados, tendo por objetivo fomentar nossa relação com a literatura, tão frequentemente abandonada diante dos compromissos acadêmicos e profissionais. Buscamos marcar encontros mensais durante o período letivo, nos quais conversamos sobre os livros e – tão importante quanto – comemos). Os parágrafos a seguir partem de reflexões em preparação para este encontro; não tenho como deixar de agradecer ao grupo pela constante provocação do pensamento.

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A citação que abre este texto é uma fala da ilustre criatura junto a seu criador, o cientista Victor Frankenstein (Há de se comentar, em respeito a quem não leu o livro, que na obra original o nome “Frankenstein” não serve para designar o monstro, e sim o cientista que a este dera a vida. Talvez, justamente pela popularidade que a personagem obteve posteriormente, essa perversão da narrativa tenha sido necessária, haja vista a dificuldade de fazer circular, pelos meios de comunicação, a imagem de um monstro inominado). São linhas potentes, ao mesmo tempo raivosas, ressentidas, sofridas e ameaçadoras. Articulam o desespero de uma personagem patética com a amargor de um monstro em fúria. No início de sua vida, tenta cantar como os pássaros, mas só emite sons horrendos; dedica amor e admiração aos homens, a quem desperta apenas repulsa e temor. Esse acúmulo de frustrações marca uma virada, quando toda esperança de aceitação desmorona e se sedimenta em forma de vingança.

Muitos temas para debate nasceram dessa fala. Um deles me parece especialmente oportuno para se discutir a questão do outro, e por isso o destacarei aqui. Diante de um longo relato da criatura acerca de seu sofrimento durante os dois anos desde seu surgimento até o fatídico encontro com seu criador, somos chamados a julgar suas ações. Seria o monstro originalmente bom ou mau? Teria o meio corrompido um espírito virtuoso ou os vícios de uma carne desgastada e amaldiçoada só fizeram atualizar em sua história uma maldade a priori? De um ponto de vista mais emocional, é a criatura digna de nossa compaixão?

A narrativa de Shelley é intrigante porque joga com nossas susceptibilidades. O desespero no relato de Victor Frankenstein acerca de sua história determina nossa inclinação a conceber o mostro como horrenda aberração. Porém, conforme a palavra é tomada pela própria criatura, lastimamos seu destino miserável, a condenação que a própria existência lhe impôs. Mas o demônio é ardiloso: Frankenstein nos alerta sobre a sedução exercida pela sua inteligência manipuladora e pela doçura ácida na fala. E voltamos a duvidar dele e de nossas próprias opiniões.

No fim, a compaixão acompanhará as oscilações de nossa consciência acerca da condição existencial da criatura. A cada vez que olhamos o mundo pelos seus olhos, que entendemos seu corpo abjeto como veículo possível de uma alma, condoemo-nos por ela. Seria o monstro um humano? O que lhe confere ou não essa humanidade? Seria, de outro modo, um “semi-humano”? Nesse registro, há gradações de humanidade?

Esse limbo ontológico no qual Mary Shelley insere sua criatura é, talvez, a mais perversa condição. Trata-se do locus do pária, do excluído.

O pária não é “coisa”, tampouco é “alguém”. Sua presença é por vezes tolerada, mas não se deseja a sua integração. Não pode ser descartado ou eliminado sem constrangimento, pois certo pudor mantém acesa como fagulha a desconfiança de que, afinal, ele pudesse estar entre nós. Assim, o excluído vaga nas fronteiras do humano, tal qual  Agamben descreve o homo sacer. (Recorremos aqui à noção de homo sacer, conforme apresentada pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. Figura complexa do direito romano, sua vida biológica (a única que lhe resta) pode ser tirada sem que se caracterize um homicídio, porém não é autorizado o seu sacrifício em rito. Trata-se de um ser vivo que não mais compartilha os direitos assegurados ao homem político. A aparente contradição entre o corpo sacro e a impunibilidade de seu assassino constitui uma chave de compreensão para o exercício do biopoder, vetor central na organização biopolítica dos estados modernos)

É particularmente interessante que em um capítulo dedicado a discutir as cobaias humanas, Agamben tenha destacado o lugar da ciência (e, em particular, as ciências médicas) como agente biopolítico de relevância: “[…] no horizonte biopolítico que caracteriza a modernidade, o médico e o cientista movem-se naquela terra de ninguém onde, outrora, somente o soberano podia penetrar” (AGAMBEN, 2002, p. 166). A leitura de Frankenstein a partir de nosso momento histórico, já transcorridos mais de dois séculos de progresso rápido e barbárie extremada, recebe estofo material a se colocar em seu imaginário. Torna-se inevitável a  associação entre a imagem de Frankenstein e a de cientistas dos campos de concentração (nazistas ou norteamericanos). Convivem, lado a lado e em ambos os casos, o horror de corpos mutilados com a busca eticamente cega pelo conhecimento.

Shelley eloquentemente dá forma ao tipo ideal do homem da razão técnica, cuja face obscura emergiria em toda sua repugnância na II Guerra Mundial. Victor Frankenstein é o próprio vetor do biopoder, sobrepondo à vida do outro – vida que ele mesmo concebera – as suas normas de sociabilidade e de regulação política. Para ele, o monstro não deve, não merece viver. É certo que a rejeição do criador pela sua criatura se fortalece à medida que este, por seus próprios feitos, se torna um inimigo da humanidade; entretanto, a repulsa inicial de Frankenstein em relação à sua criatura diz mais respeito à sua constituição do que às suas ações. Basta que ele viva para que não mereça viver.

Assim também é o pária. Sua exclusão raramente se baseia em uma história pessoal de perversidades, mas, antes, em uma pré-condição ligada ao seu lugar de origem ou à posição que ocupa no ordenamento social. Isso porque o pária é a radicalização do outro, conceito que não se define em si, mas sempre em relação ao um, ao idêntico. O outro não existe, se não diante do “eu”. Dessa forma, é possível dizer que o outro é sempre fruto de nossas ações e de nossas classificações. Ele não existe antes que o tornemos outro.

Frankenstein fabrica seu monstro duplamente. Em um primeiro nível, dispara a fagulha da vida sobre a massa de carne inanimada, dando início à vida biológica da criatura. Porém, não se reconhece no rosto retalhado, ou melhor, não reconhece nele aquilo o que requer sua ideia de humano. Assim, em um segundo nível, atribui à sua criatura a marca que acompanhará toda sua história, que é a rejeição. A sucessão de ações, emoções e pensamentos do cientista funcionam como uma espécie de profecia auto-realizável, em que o monstro age de acordo com aquilo o que dele se espera: age feito monstro.

Assim como Victor Frankenstein, também fabricamos nossos monstros. Assumimos o outro como ameaça, o que só gera desconfiança e violência. A tensão que brota desse convívio conflituoso está em se notar mais as diferenças que as semelhanças, mais justificar as desavenças do que buscar as conciliações. Evidentemente, não se trata de tarefa fácil; contudo, acolher a diferença como desafio necessário é exercício fundamental de nosso esforço civilizatório.

SHELLEY, Mary W. Frankenstein. New York: Barnes & Noble, 2015.

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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