Por Gianpaolo Dorigo, Professor do Anglo Vestibulares
O jogo é de uma grande simplicidade: agrupar docinhos do mesmo tipo em uma sequência de casas, provocando seu esmagamento e contando pontos. Algumas variações incluem casas cobertas de gelatina, mais difíceis de dissolver, chocolates que se multiplicam feito células cancerígenas (dando ao chocolate uma estranha negatividade) e assim por diante. Ao ganhar pontos e limpar casas, o jogador está apto a mudar de fase. Estou na fase 86, conheço gente que passou de 200 e não há fim à vista. O jogo parece ser eterno e, sem dúvida, é viciante.
E multidões se dedicam a ele. Há amigos de quem não recebo notícia, mas sou regularmente informado, via Facebook, de seus triunfos no Candy Crush. Outros amigos, que tomo por intelectuais refinados, volta e meia pedem-me “vidas”. Parentes, colegas de trabalho, pais de família, todos jogam. Por quê ? Qual o poder de atração de um jogo tão simplório ?
Incialmente pensei em simples higiene mental: após um árduo dia de trabalho e demandas intelectuais, após horas a fio se preocupando com respostas racionais a problemas concretos, o Candy Crush oferece um momento de desligamento. Aprende-se a mecânica de Candy Crush rapidamente, joga-se quase sem pensar, e pequenas recompensas surgem sob a forma de sucessivas mudanças de fase. Graus crescentes de dificuldade entre as fases ajudam a provocar, periodicamente, uma sensação de satisfação.
Todavia, a maior parte dos trabalhos que fazemos no cotidiano talvez já seja mecânica e não demande muita reflexão. Normalmente, as recompensas que temos por esse trabalho enfadonho são tão fúteis quanto as de Candy Crush: bens de consumo, cuja satisfação prometida se esgota pouco após a compra. Sendo assim, permanece a pergunta: qual o poder de atração da saga de Candy Crush ?
Há em Spinoza o difícil conceito de conatus, descrito pelo filósofo como algo semelhante a um “apego à vida”. Mais do que simples instinto de sobrevivência, o conatus expressa o desejo de efetivamente viver a vida, realizar a vida. Trata-se, ao que me parece, de um impulso essencial do ser humano, o desejo de querer “ir para frente” de buscar um “desenvolvimento” pessoal. O uso da palavra “desenvolvimento” pode parecer exagerado, e remeter a um aspecto econômico que não é obrigatório na efetivação do conatus; ao mesmo tempo, a referência a “pessoal” não pode limitar o conceito ao puro individualismo: realiza-se o conatus na vida em sociedade ou, como diria Spinoza, na Natureza.
Mais tarde, Nietzsche desenvolveu o conceito de vontade de potência, que vai na mesma linha. É conhecida a carta de Nietzsche a Franz Overbeck, em 1881, na qual o filósofo alemão de diz maravilhado com a descoberta de Spinoza e afirma a grande proximidade com seu pensamento. Em Nietzsche fica claro o sentido da vontade de potência como o poder ou impulso de afirmar a vida, algo imperativo diante da doença que afetava cada vez mais a civilização.
Atualizando Nietzsche, há muito em nossas práticas do cotidiano que nega a vida. O trabalho enfadonho com relógios de ponto e atividades repetidas diz não à vida; a excessiva quantidade de normas que regulamentam cada passo do dia a dia diz não à vida; ônibus lotados e mal cheirosos (em faixa preferencial ou não) dizem não à vida; síndicos de prédios e diretores de escola, guardiães da norma, dizem não à vida; o chefe que grita com o funcionário e o machão que assobia para a moça de minissaia dizem não à vida; salários indignos dizem não à vida; fast food diz não à vida; o crime (e a PM) dizem não à vida; ter que entregar esse texto “no máximo até quinta-feira à tarde” diz não à vida.
Diante de uma existência cerceada, o Candy Crush surge como uma dos poucas formas de realização do conatus, ao mesmo tempo falsa e incompleta. E, de minha parte, peço para todos aqueles que têm Facebook: ajudem-me enviando mais vidas.