A Paixão segundo São Mateus

Pedro de Santi

Retomando o ciclo Ópera e Paixão, eu e o Prof. Celso Cruz trabalharemos o oratório de páscoa de Johann Sebastian Bach (1727) e o filme de Pier Paolo Pasolini (1964). Não se trata de uma ópera, mas de uma “paixão”.

Os dois artistas tinham uma intenção retórica ao recorrer ao Evangelho de Mateus. Bach pretendia comover os fiéis pela culpa ante o sacrifício de Cristo; e ele inclui o espectador na obra como nenhum autor de ópera contemporâneo seu conseguiria. Pasolini tem um projeto político: a resistência contra a burocratização e avanço do mundo da técnica na Itália dos anos 60 e 70; para tanto recorre a obras clássicas e as filma em regiões remotas, trabalhando com pessoas comuns e poucos atores profissionais.

Imagine-se numa cidade alemã há cerca de 300 anos. Na Sexta-feira Santa, você vai à missa, pronto para um sermão sobre a vida e morte de Cristo, pronto para cantar alguns hinos conhecidos. Ao entrar na Igreja, você se depara com duas orquestras e três corais- um de crianças- ocupando boa parte do espaço. Durante duas horas e meia o tempo e o espaço serão preenchidos por uma música maravilhosa e complexa. Em pleno espírito barroco, a música trabalha com contrastes extremos; ordem versus caos; inocência versus culpa. Texto e música o convocam a se dar conta da culpa primordial que nos une e que está sendo ali comemorada. Por oposição, Jesus foi sacrificado como uma ovelha inocente.

Estamos lá para fortalecer nossos laços, na medida em que comemoramos (lembramos-nos juntos) do crime primordial que nos uniu e do qual somos cúmplices. É o paraíso do neurótico obsessivo, a expressão maior do mito criado por Freud em “Totem e Tabu”.

Cada elemento da música revela um mundo onde há ordem absoluta, beleza e justiça. No contexto da Reforma, no século XVII, argumentar que o mundo era regido por uma ordem racional equivalia a dizer que havia um artífice por trás disto; a ordem era uma prova da existência de Deus.

Assim, a beleza da composição não é fruto de um ato criativo espontâneo, aos moldes do Romantismo que ainda não surgira. A beleza é arte retórica e o convencimento do ouvinte é produzido por uma artilharia pesada e pensada. Na introdução, o ritmo marca o pulso do coração de Jesus. Quando ele fala, uma auréola sonora de violinos é ouvida; menos em sua última fala, logo antes de morrer, “Senhor, porque me abandonaste”. Quando Judas se arrepende, a melodia tem 30 notas, o número das moedas que recebeu pela traição; e suas falas são dissonantes, fora da ordem. Na partitura e nos gestos dos instrumentistas sinais da cruz são deliberadamente desenhados. Por todas as mídias e poros, a mensagem é veiculada.

Johann Sebastian Bach (1685-1750) talvez seja o mais produtivo (em quantidade e qualidade) dos compositores clássicos. Distante em tudo do mito romântico do compositor atormentado e genial, ele era um trabalhador compulsivo, a serviço da Igreja luterana. Sua sonoridade pode ter parecido até antiga a seus contemporâneos, que não viam nele o gênio que hoje reconhecemos. Antes da Paixão de São Mateus, Bach havia musicado a paixão de São João, também belíssima. E ele deixou fragmentos de obras baseadas em outros evangelhos. Mas “A paixão segundo São Mateus” é uma realização inigualável. Um grande regente contemporâneo, John Elliot Gardiner o atesta em um livro recente: “Bach. Music in the castle of Heaven” (2013).

Se você não for convertido ouvindo Bach, desista. Foi meu caso. Mas sua música me convence de que nós humanos, capengas que somos, encontramos na arte o ponto mais alto do sublime.

Neste mesmo espaço do Blog Nota Alta ESPM, já abordei o diretor italiano Pier Paolo Pasolini (“Pasolini ante Édipo Rei”, 23 de setembro de 2013). Remeto o leitor àquele texto para mais detalhes biográficos sobre ele. Lembro apenas que este é um dos primeiros filmes do diretor italiano, contendo em embrião a linguagem popular e corporal que caracteriza o conjunto de sua obra.

A versão de Pasolini traz um grande contraste entre a segurança e assertividade de Jesus ante o sofrimento e a falibilidade humana. Estão presentes as falas mais humanas (“afasta de mim este cálice”), mas predomina a presença forte e afirmativa.

O sofrimento e inconsistência humanos se espalham pela narrativa. A primeira seqüência sugere que José ficou desconfiado e perturbado pela gravidez de Maria, até um anjo lhe revelar a concepção pelo Espírito Santo. É mostrado o olhar vazio do exército que executa as crianças e o horror de suas famílias. A promessa de lealdade de Pedro, suas 3 renegações e a vergonha em que se entreva. A vaidade, cobiça e culpa de Judas. O desespero de Maria ao ver filho crucificado. A generosidade do soldado que dá água a Jesus na via crucis, o deboche de outros soldados ao pé da cruz.

Com Bach, habitamos o sublime, com Pasolini, a humanidade corriqueira. Com Bach, o elogio da técnica e da transcendência; com Pasolini, a denúncia do desprezo pela vida envolvido no mundo da técnica. Eles estão noas duas pontas da Modernidade.

Ao longo dos anos 60 e, sobretudo nos 70, a linguagem cinematográfica de Pasolini se radicalizou e tornou subversiva. Este filme se mantém no limiar, a ponto de constar numa lista de filmes recomendados pelo Vaticano.

A adaptação de Bach do evangelho de Mateus inicia a narrativa três dias antes da crucificação. Pasolini, mais fiel ao texto original, mostra-nos passagens do nascimento e da infância de Jesus, seu batismo por João Batista, inúmeras passagens dos sermões mais conhecidos. Mas ele inclui algo ausente no evangelho de Mateus, que se encerra na deposição do corpo de Cristo. O diretor italiano opta por acrescentar a ressurreição, três dias depois. Talvez por sua intenção não ter sido a de reunir pela culpa, mas sim para a esperança na vida nova.

SERVIÇO;

A paixão segundo São Mateus. Sétimo encontro do Ciclo Ópera e Paixão.

Dia 10 de abril, 16:30, na sala B 104. Com Pedro de Santi- Professor e Líder da área de Comunicação e Artes- e Celso Cruz- Professor e Coordenador do PAPO.

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