A Incapacidade de sonhar

Por Pedro de Santi

Em agosto, publiquei neste espaço um texto chamado “A capacidade de sonhar“. Retomo agora a ideia por seu avesso. Trato aqui de um aspecto cada vez mais comum da adolescência contemporânea, assim como da representação que o mundo adulto faz desta mesma adolescência.

Começo por uma situação frequente em atendimento psicanalítico. Um jovem se apresenta e diz que gosta bastante de faculdade que cursa, mas que também se veria feliz cursando medicina; da mesma maneira, ele adora sua banda e fotografia, por exemplo. Ouvir algo assim sempre me parece algo positivo e animador: esta pessoa pode se encontrar e realizar em muitos lugares na vida. Mas este recurso tão interessante passa a ser vivido como paralisante: ela não gosta de nenhuma daquelas coisas a ponto de considerar que valha a pena renunciar às demais para se aprofundar e comprometer privilegiadamente com uma só. A escolha é vivida como uma perda. Diante de tantas possibilidades e acessibilidade, ela se vê paralisada e dispersa, degustando ora uma coisa, ora outra. Sem conseguir renunciar a nada, este jovem não consegue realizar nada, canalizar sua energia em um desejo ou projeto consistente. Ele reclama, afinal, de tédio e falta de tesão.

Quem venha de uma formação psicanalítica baseada em Freud ou Lacan, foi formado para pensar a experiência humana da perspectiva da falta. Somos seres desejantes em busca do reencontro com uma integridade narcísica vivida (ou, mais provavelmente, apenas alucinada) na primeira infância.

Lançamos-nos em direção a objetos de desejo e ideias projetados num futuro. Atingidos os objetos, a satisfação obtida é proporcional ao esforço, demora e acúmulo de tensão acumulada. O prazer que se pode obter é proporcional ao desprazer que o antecede e ao qual nos expomos. O sonho de narciso e do hedonismo não é realizável: uma vida feita só de prazer, sem dor. De toda a forma, os objetos atingidos e prazeres obtidos não obturam nossa falta. A inquietude renasce e novos objetos serão almejados pelo desejo.

Este paradigma importante e válido encontra dificuldades para pensar aquelas características citadas no início do texto: a “falta de tesão”.

Longe de pensar que vivamos uma epidemia cerebral de deficit de atenção, penso que vivemos uma crise cultural de “falta de falta”, ou falta de futuro. O mundo do consumo se consolidou e passa a ser mais acessível a um número maior de pessoas. Desde que aquilo que chamávamos de globalização nos anos 80 venceu, parece que a História acabou, que não se tem alternativa ao modelo cultural e econômico que vivemos. Se não existir futuro ou possibilidade de mudança, como criar projetos e sonhos? Mais que isto, se não existe futuro, o passado perde o interesse; uma vez que seu estudo serve para entender processos históricos e criar prospecções de futuro. E se não há passado nem futuro, só existe este instante, e “eu só quero me divertir”. E esta diversão só poderá ser atingida através de estímulos hiper-intensos que vençam a falta de tesão.

Na psicanálise, outras linhas de abordagem começaram a ser evocadas para pensar esta experiência. A “Escola das relações de objetos” e  a criação da expressão “cultura do narcisismo” (em 1979, pelo antropólogo norte-americano Christopher Lash) oferecem instrumentos teóricos mais apropriados para este contexto.

Vivemos num ambiente de excesso de acesso que acaba por se configurar como traumático e leva a um fechamento narcísico que não é hedonista (como é banal que se diga), mas sim defensivo.

Uma casca de normalidade funcional e adaptada é criada, escondendo um absoluto vazio interior. Da experiência da falta, recuamos para a do vazio.

É como se nos encontrássemos num estado de “cegueira branca”, na imagem tão poética e feliz encontrada por José Saramago em seu “Ensaio sobre a cegueira”. Não se trata de não ver por falta de estímulo luminoso, mas, pelo contrário, de não ser capaz de discriminar e dar sentido a nada ante a saturação de ofertas e demandas da vida. Permanecemos dependentes e colados na exterioridade e não construímos espaços internos.

Aqui está a incapacidade de sonhar. Para sonhar, é preciso recolhimento, tempo, alguma segurança, ideais, esperança em que haja algo chamado futuro.

E o adulto que assiste a isto? Ele se põe a lamentar que o jovem seja preguiçoso e mimado. Hiper-ansioso, passa a sobrecarregar seus filhos ou alunos com demandas e ofertas para ver se ele se interessa por algo. Inconscientemente invasivo, ele produz e reproduz assim, sem perceber, a dinâmica que pretendia romper.

Ah sim, e quer “curar” o jovem e clama por diagnósticos biológicos e impessoais nos quais possa não se ver implicado.

Às vezes, a gente precisa sair de cima do outro e criar uma condição de falta e espaço potencial. Ao invés de sermos tão interessados e disponíveis, seria bom sermos pessoas que ante o outro “deixam a desejar”. E sonhar.

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