Por Pedro de Santi
Fui convidado a participar do Programa Encontro com Fátima Bernardes (exibido na terça-feira, dia 16/07). O tema proposto foi o “sonho”. Fiquei um pouco apreensivo sobre participar de um programa de auditório, preocupado por não ser possível desenvolver ideias e ficar preso a questões muito concretas. Resolvi aceitar o desafio e tentar dar o meu recado, com a linguagem mais coloquial que conseguisse. A participação foi breve e o programa, simpático. Abaixo, os pontos que preparei, mas que não pude expor na totalidade, é claro.
Um marco importante da origem da psicanálise foi a publicação em 1900 do livro “A interpretação dos sonhos”, de Sigmund Freud. O livro reunia sua experiência e esforços de teorização de quase 15 anos de prática clínica, num movimento que levou o neurologista Freud a abandonar a prática médica e inventar um método para o tratamento da mente de pessoas cujos sofrimentos não podem ser reduzidos a uma causalidade orgânica.
Mas o que é o sonho? Em primeiro lugar, ele é uma experiência. Antes de toda tentativa de explicá-lo é preciso guardar isto: trata-se uma experiência alucinatória que qualquer pessoa tem, frequentemente rica em sensações e sentimentos, sobre a qual não temos muito controle (frequência, conteúdo, lembrança). Há quem se lembre mais ou menos de seus sonhos, há períodos em que sonha mais ou menos. Ele testemunha que nossa mente é muito maior que nossa consciência. Somos capazes de criar algo como filmes nos quais somos concomitantemente roteiristas, diretores, montadoras, atores e espectadores. Há criatividade e estranhamento nesta experiência tão comum.
Mais especificamente para a psicanálise, o sonho tem sentidos. Estes sentidos dizem respeito à expressão daquilo que está excluído da articulação consciente. Mas quando se diz que o sonho é simbólico, representa outra coisa, naturalmente se pergunta o que ele representa. A resposta psicanalítica é a de que não é possível decodificar sonhos com chaves fechadas: em outros termos, não existe tabela fiável de correspondência. Cada pessoa- no limite, cada sonho- produz sua própria cadeia de significações, produzidas pela memória e sentidos singulares de sua história. É certo que compartilhamos símbolos, estamos na mesma cultura, afinal. Mas a interpretação de um sonho implica em questionar a cada vez o sonhador sobre a rede de sentidos em torno de cada elemento de sua narrativa. O analista não é aquele que interpreta, mas aquele que entra em contato e procura despertar no sonhador suas fantasias em torno do sonho.
Desta experiência, emerge então o que subjaz ao sonho. Para a psicanálise, desejos reprimidos, memórias e ideias não aceitas pelo conjunto de valores que compõe a identidade do sonhador. Impressões primitivas ainda sem forma, não simbolizadas, que pressionam por expressão. O não dito.
O sonho guarda parentesco com toda a nossa atividade de fantasia e não se reduz ao período do sono. A capacidade de sonhar é um indicador de saúde mental, uma vez que ela implica sermos capazes de processar e transformar a massa de excitações e acontecimentos que nos envolvem (Ver Thomas Ogden, “Esta arte da psicanálise”. Porto Alegre; Artes médicas, 2010). No mundo contemporâneo, vivemos presos ao instante, às urgências e mal temos tempo e condição de sonhar.
Nos últimos 10 a 15 anos, pesquisas sobre os jovens apontam que eles não correspondem mais àquele modelo dos anos 60: utópicos, revolucionários. Pelo contrário, eles são muito preocupados com coisas concretas e imediatas como emprego e família, sofrem de muito tédio e buscam prazer intenso em baladas, substâncias e games. Alguns de meus alunos ou pacientes reclamam não ver sentido para as coisas que tem feito da vida. Pergunto a eles o que sonham para a vida daqui a cinco ou dez anos. A resposta mais comum que recebo é a seguinte: “Como assim, cinco ou dez aos, prof.? Sem chance de pensar nisto, eu só quero chegar vivo na sexta-feira”. A falta de confiança em instituições públicas, a premência da inclusão profissional, do excesso de demandas pessoais e profissionais, as exigências e violências da vida urbana transformam a mente numa máquina reativa movida por uma lógica da sobrevivência: só queremos tirar problemas da frente, sem condições de criar, pensar prospectivamente. Sonhar, enfim.
Chegamos agora ao valor das manifestações recentes. Muitos jovens sentindo-se sem voz ou representação num mundo que funciona distanciado do deles, pela primeira vez ganharam voz coletiva, saíram de casa e estão procurando ter com o que sonhar. O adulto que reclamava da apatia assombra-se agora e tem medo do movimento. Reclamávamos que eles não agiam e agora reclamamos porque eles não agem do jeito que queríamos. Eles não realizam nossos sonhos conscientes, mas os inconscientes, afinal. Como nossos filhos: espelhos convexos de nós.
Há quem tente desqualificar estes sonhos e dizer que eles não tem valor ou sentido e há quem já tenha medo da hora de ir dormir. Há também quem tente controlar e se apropriar dos sonhos espontâneos.
Como estamos no atraso, alguns dos sonhos das ruas nos parecem pesadelos. Eles evocam ditadura, violência, ameaça de golpe, retorno de um passado que julgávamos bem enterrado. Em junho, o anoitecer em algumas cidades se tornou a hora do pesadelo que se aproxima, da eclosão do imprevisível.
Será que, afinal, preferiríamos que estes jovens fossem diagnosticados com a “síndrome da manifestação juvenil” e, devidamente medicados, voltassem à apatia?