A conquista biológica da América

Por Augusto Silva, professor do Anglo Vestibulares

Ficar doente é, no mínimo, um incômodo para qualquer pessoa. Em alguns casos, o incômodo pode dar lugar uma ameaça séria à integridade, chegando até a causar a morte do portador da doença. No entanto, há ocasiões ainda em que o potencial destruidor de um microrganismo causador de doenças em seres humanos é ainda maior, chegando a ameaçar a existência de toda uma população durante um surto rápido de contágio em massa – as chamadas epidemias. Esse foi, provavelmente, o caso que levou à redução drástica das populações indígenas da América a partir de finais do século XV e, consequentemente, à dita “conquista” do continente pelos europeus nos séculos seguintes.

A chegada dos europeus à América em 1492 significou também o início do desembarque no continente americano de um grande número de organismos causadores de doenças procedentes do “Velho Mundo” e até então desconhecidos pelas populações nativas. Enquanto a arte e as crônicas europeias da época retratam o processo de dominação da América como resultado de feitos supostamente heroicos de um ou outro conquistador dotado de uma tecnologia bélica superior, o mais provável é que a dizimação das populações ameríndias tenha ocorrido antes pela contaminação por gripe, sarampo, tifo, varíola e outras doenças do que pelo confronto direto com os conquistadores propriamente ditos. Houve casos mesmo em que os europeus já encontraram povoações inteiras dizimadas por epidemias antes mesmo de sua penetração no interior do continente – o mero estabelecimento dos europeus no litoral já foi suficiente para que as doenças por eles trazidas contaminassem os índios do litoral e estes as levassem para as populações do interior.

O sentido essencialmente único dessa guerra biológica, com a quase inexistência de doenças americanas dizimando europeus, pode ser explicado em parte pelas características e pela pequena quantidade das espécies animais domesticadas no continente americano, que não favoreciam o contágio dos habitantes nativos por doenças originárias desses repositórios naturais. Ao mesmo tempo, a imensa mortalidade dos indígenas americanos por doenças relativamente bem conhecidas dos europeus se explica pelo fato de que as populações tendem a se tornar geneticamente mais resistentes a qualquer doença a que estejam expostas durante muito tempo: em cada surto, os indivíduos menos resistentes morrem ou têm sua saúde seriamente comprometida, enquanto os demais sobrevivem e passam para as próximas gerações os mecanismos que lhes garantiram maior resistência. Além disso, as doenças infecciosas – aquelas que ocorrem em epidemias, e que causaram grande mortalidade de indígenas – costumam ser combatidas pelo sistema imunológico humano de forma rápida e que não permita novas infecções por um bom tempo. Desse modo, para não serem erradicadas depois de apenas um surto, elas necessitam de populações grandes e densamente concentradas, do tipo que existia só em algumas regiões praticamente sem comunicação entre si na América pré-colombiana.

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