Por Ilan Avrichir
Há pouco mais de 50 anos o mundo quase voou pelos ares. Os Estados Unidos e a União Soviética quase , quase entram numa guerra nuclear que teria matado centenas de milhões de pessoas e tornado o planeta inabitável.
A história, talvez você já saiba. Um belo dia de outono, o então presidente Keneddy foi acordado com a notícia de que os russos estavam instalando mísseis de longo alcance, carregados de ogivas nucleares, em Cuba. Depois de uma semana de deliberações, assessorado pelo who is who do poder americano, decidiu impor um bloqueio naval à Cuba. Navio nenhum transportando armas entra, foi essa a ordem dada à marinha. E, se os misseis não fossem retirados, eles, os americanos iriam bombardear Cuba e resolver o problema rapidinho.
A tensão internacional chegou a níveis nunca dantes imaginados. Eu me lembro (é, eu já existia em 1962) das pessoas se aglomerando em frente dos jornais afixados nas bancas para saber se o mundo ainda ia existir no dia seguinte. Não, cara, não tinha internet em 1962. Alias, até televisão era caro pra burro e só tinha na casa dos ricos.
E por que diabos eu resolvi voltar nessa história agora?
É que eu acho que ela oferece uma excelente oportunidade pra demostrar que discurso oficial é pra ser consumido com cautela.
Não entendeu? Eu explico.
Seguinte. Kennedy, os americanos, o mundo deu sorte e Krushev, que era o todo poderoso da URSS na época, recuou e mandou seus navios voltarem. O discurso oficial americano apresenta até hoje a decisão de impor um bloqueio a Cuba como um ato de genialidade do presidente. Confrontado com a insidiosa manobra dos russos, que instalaram mísseis em Cuba na calada da noite, Kenedy teria reagido com ponderação e bom senso. Nem capitulou, deixando que os mísseis permanecessem, nem bombardeou Cuba, como alias queriam muito os comandantes das principais armas dos EUA naquele momento.
É verdade que Kenedy foi tão genial como pretende a maior parte da historiografia americana?
Not quite so, afirma Graham Allison, que enquanto professor de Harvard passou cinco anos lendo as atas das reuniões que os americanos fizeram à época e entrevistando os principais envolvidos no episódio.
A melhor decisão teria sido negociar de cara com a URSS. Primeiro, porque os EUA tinham mísseis na Turquia, carregados de ogivas atômicas, apontando para território russo. E segundo, porque em 1961 os americanos tinham apoiado um bando de cubanos numa tentativa desastrada de desembarcar na ilha, com a intenção de derrubar Fidel. Era natural que o governo russo não gostasse da situação e tivesse divisado um plano, por pior que fosse, para alterá-la. Se, afirma Alisson, Kenedy tivesse oferecido logo de início aos soviéticos garantias de que não voltaria a atacar Cuba e de que retiraria os mísseis da Turquia, é bem provável que eles tivessem concordado em retirar os mísseis, sem que fosse necessário pra isso colocar o mundo à beira de um a guerra atômica.
E o que é que, então, o discurso oficial não revela e por que é preciso ir devagar antes de aceitá-lo com casca e tudo?
Em primeiro lugar, não revela que havia a alternativa de negociação e que essa deveria ter sido tentada primeiro, se o interesse maior fosse o de minimizar o risco de guerra. Em segundo, não revela que uma coisa que Kenedy considerou muito na decisão de não negociar de cara foi a reação que o povo americano poderia ter à decisão. Estava em curso uma campanha eleitoral para o congresso americano e o risco de que os eleitores entendessem uma oferta de negociação como uma resposta fraca, e punissem o partido do então presidente não votando nele era grande.
A história oficial, se não nega pelo menos também não destaca o fato, de que os soviéticos transportaram para Cuba 20 mil soldados, os mísseis e suas plataformas, sem que o serviço secreto americano tomasse conhecimento da coisa. Uma belíssima comida de bola. Onde estavam a CIA e toda a inteligência americana nos meses que precederam a crise? Deitados em berço esplendido? A história oficial também relaciona pouco a decisão soviética de instalar os mísseis em Cuba com o fato dos EUA terem, à época, mísseis na Turquia e com à invasão da Baia dos Porcos.
E há uma série de outras coisas que a história oficial não conta, mas para explicar isso eu precisaria encompridar ainda mais esse Cutuco que já ficou bastante longo. Se você ficou interessado na história, não precisa ler o livro do Alisson, que é muito cheio de detalhes e chato. Pode ver o filme 13 dias que abalaram o mundo, direção de Kevin Costner, que puxa a brasa bastante pra sardinha do presidente americano, lógico, mas é divertido e uma reconstituição bastante razoável dos fatos da época.
Bom feriado e cautela com os discursos oficiais!
PS. Ceticismo com relação a discursos oficiais também recebe, às vezes, o nome de análise de discurso e outras de pensamento crítico. Mas isso é uma outra história, pra um outro Cutuco, de preferência escrito por alguém que entenda mais desses assuntos do que eu.