Cenas de violência sectária que não eram vistas na Irlanda do Norte há mais de 20 anos foram registradas na noite de quinta-feira em Belfast, quando, ao longo de várias horas, jovens protestantes defensores da permanência da província no Reino Unido arremessaram coquetéis molotov contra policiais, incendiaram um ônibus e depredaram um muro que separa as comunidades protestante e católica.
As cenas de violência foram descritas pela polícia como algo “não visto há muitos anos”, e trouxeram à memória os conflitos entre os norte-irlandeses protestantes e os republicanos católicos que duraram mais de 30 anos e foram encerrados pelo Acordo da Sexta-Feira Santa, em 1998, deixando um saldo de mais de 3.500 mortos.
Os episódios de quinta-feira foram um acirramento significativo de cenas vistas ao longo de todas as noites da última semana em várias cidades da província britânica. Neste período, mais de 50 policiais ficaram feridos, ônibus foram incendiados e ao menos 10 pessoas foram presas, incluindo vários adolescentes. A violência foi condenada por todos os principais partidos da Irlanda do Norte, assim como pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.
Os distúrbios podem ser atribuídos a diversos fatores, mas em seu cerne está o descontentamento entre os unionistas — população protestante defensora da manutenção da Irlanda do Norte dentro do Reino Unido, em oposição à unificação das Irlandas — com o acordo do Brexit firmado entre Londres e a União Europeia.
A fronteira entre a Irlanda do Norte, de maioria protestante e que faz parte do Reino Unido, e a República da Irlanda, de maioria católica e que integra a União Europeia, está aberta desde que o acordo de paz firmado em 1998 encerrou mais de três décadas de conflitos violentos.
Agora, a ideia de criar uma separação física entre os dois países que dividem a mesma ilha gerou os recentes conflitos.
O Protocolo da Irlanda do Norte, documento anexo ao acordo de saída do Reino Unido da UE, manteve a província britânica dentro do espaço mercantil da UE. Isso significa que produtos enviados do Reino Unido para a Irlanda do Norte, e vice-versa, precisam passar por procedimentos alfandegários.
O expediente foi adotado para evitar a imposição de uma nova fronteira que dividisse as Irlandas, o que violaria o Acordo da Sexta-Feira Santa, que restabeleceu a paz na ilha. A República da Irlanda é hoje o único território da UE com o qual o Reino Unido compartilha uma fronteira física. Qualquer habitante da ilha circula sem problemas entre os dois países, pois não há demarcação nem controle fronteiriço.
Os políticos unionistas — por vezes também chamados lealistas — se sentem traídos pela decisão de Londres, por entenderem que o Protocolo da Irlanda do Norte, que entrou em vigor em janeiro, enfraqueceu a posição do território dentro do Reino Unido. Eles afirmam que isso prejudica o comércio local, e manifestaram muitas vezes um sentimento de frustração e abandono.
Esta insatisfação vem se espalhando na população há meses. Em janeiro, pichações contra o protocolo foram feitas em áreas unionistas. No final daquele mês, as verificações de produtos britânicos em portos em Larne e Belfast chegaram a ser suspensas, após supostas ameaças contra trabalhadores portuários feitas por unionistas. Em março, um grupo que incluía representantes de paramilitares unionistas escreveu a Boris Johnson pedindo a saída do acordo de 1998.
Um episódio específico foi o estopim para a eclosão das manifestações recentes. Promotores anunciaram que nenhuma ação seria tomada contra 24 políticos do Sinn Féin — partido que defende a unificação das Irlandas — por comparecerem ao funeral de Bobby Storey, histórico líder republicano irlandês e ex-membro do IRA (Exército Republicano Irlandês), que reuniu cerca de duas mil pessoas enquanto medidas de contenção da pandemia estavam em vigor em junho de 2020.
O fato de os políticos não serem processados gerou denúncias de favorecimento judicial, em uma população desgastada por mais de um ano de pandemia, submetida a vários meses de isolamento social.
Na noite de 29 de março, uma área de Londonderry que é unionista registrou protestos envolvendo grupos de jovens, alguns de 12 ou de 13 anos. Tumultos parecidos se repetiram quase todas as noites em várias cidades, incluindo Belfast, Carrickfergus, Ballymena e Newtownabbey. Durante as manifestações, os jovens arremessam tijolos, fogos de artifício e coquetéis molotov contra policiais e veículos. A polícia acusa grupos paramilitares unionistas de incentivar a rebelião.
Na noite de quarta-feira, o tumulto atingiu novo patamar e se converteu em um confronto sectário envolvendo o chamado muro da paz no oeste de Belfast, que divide as comunidades unionistas e as comunidades nacionalistas predominantemente católicas.
Um portão que divide as duas comunidades foi arrombado, um ônibus foi sequestrado, incendiado e, ao longo de várias horas de desordem, policiais e um fotojornalista foram atacados.
Os primeiros-ministros do Reino Unido e da Irlanda condenaram a violência, e o governo da Irlanda do Norte se reuniu na quinta-feira para pedir um “fim imediato e completo” aos distúrbios. Embora divididos, os principais partidos da Irlanda do Norte condenaram os tumultos.
“Estamos seriamente preocupados com as cenas que todos testemunhamos em nossas ruas”, disseram em comunicado conjunto os partidos rivais, incluindo nacionalistas católicos pró-irlandeses e unionistas protestantes pró-britânicos. “Embora nossas posições políticas sejam muito diferentes em muitas questões, estamos todos unidos em nosso apoio à lei e à ordem, e declaramos coletivamente nosso apoio ao policiamento.”
Em nota, Boris Johnson também afirmou estar “muito preocupado com as cenas de violência na Irlanda do Norte, especialmente os ataques aos policiais que protegem o público e as empresas”, como os que atingiram um motorista de ônibus. “A maneira de resolver as diferenças é através do diálogo, não da violência ou da criminalidade”, disse ele.
Após a reunião de Boris com o primeiro-ministro irlandês, Micheál Martin, o governo de Dublin disse que ambos enfatizaram que a violência é inaceitável. Um porta-voz do governo irlandês acrescentou que o “caminho a seguir é por meio do diálogo e do trabalho com as instituições do Acordo da Sexta-Feira Santa”.
A primeira-ministra da Irlanda do Norte, Arlene Foster, disse que não há espaço na sociedade para a violência, e que elementos criminosos tentam preencher “um vácuo” causado pelo fracassos dos políticos.
Foster, do partido unionista DUP, tem sido criticada por políticos republicanos, que a acusam de instigar a agitação por criticar ferozmente o protocolo assinado com a UE, e também por reiteradamente pedir a demissão do chefe do serviço de polícia, em retaliação à decisão de não processar os políticos do Sinn Féin que foram ao funeral de Bobby Storey.
Fantasma do conflito
Os incidentes reavivaram o fantasma das três décadas de conflito violento entre republicanos católicos e unionistas protestantes, que deixaram quase 3.500 mortos.
O acordo de paz da Sexta-Feira Santa, assinado em 1998, acabou com a fronteira entre a província britânica e a vizinha República da Irlanda — país membro da UE —, mas o Brexit abalou o delicado equilíbrio, exigindo a adoção de controles alfandegários entre o Reino Unido e a União Europeia.
Após duras negociações, Londres e Bruxelas alcançaram uma solução, conhecida como “protocolo da Irlanda do Norte”, que evita o retorno de uma fronteira física na ilha da Irlanda e transfere os controles aos portos norte-irlandeses.
“Não há dúvida de que o Brexit e com ele a introdução de controles alfandegários nas mercadorias que chegam da ilha do Reino Unido prejudicou significativamente o equilíbrio de forças”, afirmou Duncan Morrow, professor de ciência política da Universidade de Ulster. É algo que “vem crescendo há meses”, explicou o especialista à AFP.
O Brexit, no entanto, é apenas um aspecto de uma crise maior entre os sindicalistas da Irlanda do Norte. Em 2017, eles perderam sua maioria histórica no parlamento regional. Dois anos depois, as legislaturas no Reino Unido viram mais nacionalistas do que sindicalistas irlandeses eleitos para o Parlamento de Westminster pela primeira vez.
Isso contribui para uma mudança demográfica da geração mais jovem em direção ao nacionalismo, fazendo com que os sindicalistas se sintam como uma minoria sitiada.