Sem alarde, Apple faz concessão em sua política de privacidade

A Apple tem permitido que programadores de aplicativos recolham dados de sua base de 1 bilhão de usuários do iPhone e os usem para direcionar publicidade, uma mudança não admitida, que possibilita às empresas ter uma interpretação muito mais livre da polêmica política de privacidade da fabricante dos aparelhos. 

Em maio, a Apple havia comunicado ao público como um todo seus planos de mudança na política de privacidade dos dados, lançando uma campanha publicitária em que apresentava um homem sob assédio, cujas atividades diárias eram monitoradas de perto por um grupo cada vez maior de estranhos. Quando recebeu uma mensagem no iPhone dizendo “Pedir ao App para Não Rastrear” e clicou nela, os perseguidores desapareceram. O recado da Apple para os possíveis clientes foi claro – se você optar por um iPhone, estará optando por ter privacidade. 

Passados sete meses, no entanto, foi permitido que empresas como Snap e Facebook continuassem compartilhando sinais de usuários do iPhone, desde que os dados fossem tornados anônimos e reunidos de forma agregada, em vez de atrelados a perfis específicos dos usuários. 

O Snap, por exemplo, informou os investidores de que planeja compartilhar dados de seus 306 milhões de usuários – incluindo os que pedem pelo “não rastreamento” – para que os anunciantes possam ganhar “uma visão em tempo real mais completa” sobre como as campanhas de anúncios estão funcionando. Qualquer dado pessoal identificável será primeiro ocultado e agregado. 

De forma similar, a diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandberg, disse que a empresa está engajada em um “esforço de vários anos” para reconstruir a infraestrutura de anúncios “usando mais dados agregados ou tornando-os anônimos”. 

Essas empresas destacam que a Apple informou os programadores de que eles “não podem derivar dados de um aparelho unicamente com o propósito de identificá-lo”. Isso significa que eles podem observar “sinais” de um iPhone a partir de grupos, permitindo que os anúncios possam ser alinhados a “cortes” sobre certos comportamentos, mas não associados a identidades únicas. 

Esse tipo de rastreamento está se tornando a norma. Oren Kaniel, executivo-chefe da AppsFlyer, uma plataforma da chamada “atribuição móvel” que trabalha com programadores de aplicativos, disse que quando sua empresa introduziu, em julho de 2020, uma ferramenta “centrada na privacidade”, baseada na medição de dados agregados, “o nível de oposição que recebemos de todo o ecossistema foi enorme”. 

Agora, no entanto, essas soluções agregadas são o padrão para 95% de seus clientes. “O mercado mudou sua opinião de forma radical”, disse Kaniel. 

Não está claro se a Apple realmente deu sua benção a essas soluções. A empresa se recusou a responder a perguntas específicas para este artigo, mas descreveu a privacidade como sua estrela-guia, implicando que está definindo um rumo geral, e não um caminho bem delimitado para os programadores.

Cory Munchbach, diretora de operações da plataforma de dados BlueConic, disse que a Apple precisou evitar uma leitura estrita de suas normas porque a desestabilização do ecossistema de anúncios em aparelhos móveis seria muito grande. 

“A Apple não pode se colocar numa situação na qual, basicamente, eles estão trucidando seus aplicativos de melhor desempenho do ponto de vista do consumo do usuário”, disse ela. “Isso acabaria prejudicando o iOS.” 

Para qualquer pessoa que interprete as regras da Apple de forma estrita, essas soluções violam as políticas de privacidade estabelecidas para usuários do sistema operacional iOS. 

A Lockdown Privacy, criadora de um aplicativo que bloqueia rastreadores de anúncios, considerou a política da Apple “funcionalmente inútil para impedir o rastreamento por terceiros”. A companhia realizou uma série de testes com os principais aplicativos e observou que dados pessoais e informações do aparelho ainda estão “sendo enviados para rastreadores em quase todos os casos”. 

Por sua vez, empresas que agregam dados de usuários ressaltaram que o motivo pelo qual os aplicativos continuam a “vazar” informações, como o endereço IP e a localização de um usuário, é porque alguns simplesmente precisam dessas informações para funcionar. Os anunciantes precisam conhecer certos dados, como o idioma do usuário ou o tamanho da tela do dispositivo, caso contrário, a experiência no aplicativo seria péssima. 

O risco é que, ao permitir que dados da esfera do usuário sejam usados por terceiras partes obscuras, ainda que com a promessa de não cometer abusos, a Apple está confiando nos mesmos grupos que o executivo-chefe Tim Cook criticou como “vendedores ambulantes apenas procurando ganhar um dinheirinho rápido”. 

De acordo com Munchbach, as empresas se comprometerão a apenas olhar para os dados da esfera do usuário uma vez que estes tenham sido tornados anônimos, mas os usuários, sem acesso aos dados ou aos algoritmos que trabalham por trás da cena, não saberão realmente se a privacidade de seus dados foi preservada. 

“Se a história de precedentes nas tecnologias de anúncios estiver valendo, essas caixas pretas escondem muitos pecados”, disse ela. “Não é absurdo supor que isso deixe muito a desejar.” 

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/12/09/sem-alarde-apple-faz-concessao-em-sua-politica-de-privacidade.ghtml

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