Personagens brasileiros ganham audiência

Filho de um topógrafo que ajudou a construir a Usina de Nuclear de Angra 1 e de uma pianista, Leandro Melo, costumava cantarolar para Bebel, filha recém-nascida, os dois deitados na rede: “Há muito tempo nas águas da Guanabara…”, do Almirante Negro, de Aldir Blanc. E sentia uma conexão grande com a MPB. 

Inspirado no “Grande Circo Místico”, disco de Chico Buarque e Edu Lobo, Chaps, como Melo é conhecido, juntou-se a três amigos de Recife: João, também pai de primeira viagem, Felipe e Ênio. Lançaram, então, o Mundo Bita, desenho musical infantil em DVD, com canções de autores nacionais consagrados, como Milton Nascimento, Lulu Santos e Ivete Sangalo. 

Completando agora 10 anos, assistido por crianças desde o berço até a idade escolar, Bita, que é o apresentador do circo, entrou para o clube dos bilhões de visualizações no YouTube e do licenciamento de personagens e marcas para crianças, que movimenta no Brasil em torno de R$ 12 bilhões por ano. 

Mesmo antes de Bebel nascer, Chaps começou a desenhar nas paredes do quarto os personagens do circo. O apresentador, de cartola e bigode laranja, foi batizado de Bita (apelido de Silvio Lasalvia, 1942-1992), um grande goleador do clube de futebol Náutico do Recife. 

O amigo João Henrique Souza, jornalista e redator de publicidade – “o único que tinha dinheiro na turma”, diz Chaps – tirou “70 conto” (R$ 70 mil) que tinha na poupança para bancar o primeiro DVD do Mundo Bita. Juntaram-se outros amigos: Felipe, web- designer, professor de desenho de Chaps, e Ênio Porto, formado em ciências da computação. Juntos fundaram a Mr. Plot, produtora dos programas do Bita, que é acompanhado por uma trupe de crianças e bichinhos. 

Felipe cuida mais da parte comercial da empresa, que se mantém enxuta com menos de 20 funcionários fixos. O estúdio de gravação, que no início era improvisado com colchões, para melhorar a acústica, hoje é profissional. O DVD “Bita e os Animais” ganhou disco de diamante da Sony Music em 2020, com cerca de 215 mil DVDs vendidos, e foi indicado para o Grammy Latino de Melhor Álbum Infantil em 2018. 

“Nós aproveitamos o momento do surgimentos dos ipads e outros tablets, além do YouTube”, diz Felipe. Hoje, o Mundo Bita acumula cerca de 9 bilhões de visualizações no YouTube e tem mais de 30 parceiros licenciados, ultrapassando 1,8 milhão de produtos vendidos, de camisetas e xampus a sorvetes. E depois de ter clipes gravados em espanhol e português de Portugal, deve ter uma versão em inglês lançada este ano. 

Bita, como a veterana Turma da Mônica, a Galinha Pintadinha, o Aventureiro Azul, de Luccas Neto, e o novato Bolo Fofo, avançam nas primeiras colocações em audiência infantil nos canais de vídeo sob demanda, YouTube, Spotify, e rivalizam com os veteranos da Disney, Nickelodeon e com os Teletubbies. 

A empresa especializada em pesquisas de marketing para o mercado infantil Kids Corp ouviu, na primeira semana de janeiro, 2.840 crianças de três a seis anos sobre seus personagens favoritos. Mônica ficou com 8,9% das preferências e Galinha Pintadinha, com 8,3%, em segundo e terceiro lugar, respectivamente. Só perderam para o Bob Esponja (12,7%), como personagem predileto. Homem Aranha e Barbie ficaram em sexto e sétimo lugares (7% e 6,7%). 

Entre os canais favoritos no YouTube, a Galinha Pintadinha, saída do folclore brasileiro, casada com o galo carijó, ficou em terceiro lugar, perdendo só para os dois irmãos Neto, Luccas e Felipe. 

Na música, seu cororicó ganha da Anitta, na audiência infantil (4,4% versus 2,7%). Mundo Bita e Patati Patatá seguem na cola com 2,2% e 2% das preferências. Entre os programas de TV, os estrangeiros lideram com Patrulha Canina e Peppa Pig. Mônica e a Galinha Pintadinha ficam em sexto e sétimo, conforme a pesquisa da Kidscorp. 

No mercado total de licenciamentos, que vende no Brasil cerca de R$ 21 bilhões por ano em produtos para crianças e adultos – de roupas e brinquedos, a mochilas e outros objetos de 800 marcas diferentes -, os estrangeiros da Disney e Warner ainda dominam 75% do terreno. 

O campeão de audiência infantil Luccas Neto conta que acertou com a Warner para estrear um filme no ano que vem nos cinemas, ainda a depender da evolução do controle da pandemia. As visualizações de seus programas no YouTube passam de 15 bilhões. 

Ele grava seis horas por dia e renova diariamente suas “lives””. Em 2019 alugou dois prédios com 2 mil metros quadrados de estúdio na Barra da Tijuca para melhorar suas produções. 

“Não era meu sonho ser youtuber. Eu escrevia roteiros para outra produtora, estava atrás das câmeras, e fui demitido. Tive que abrir minha próprias portas”, lembra. Ele diz que se transformou bastante desde o início de sua participação nas mídias sociais, quando foi alvo de processos judiciais e era acusado de promover o consumismo das crianças. Em 2018 contratou uma equipe de pedagogos, advogados e psicólogos para orientarem seus programas. 

Ao todo, Luccas Neto tem 12 heróis aventureiros e 50 personagens licenciados. Tem livros, filmes no Netflix, 111 funcionários e agora o YouTube responde apenas por 15% de sua receita, em suas contas. 

Ficaram para trás os tempos da infância, quando sua mãe o levava andando para creche onde trabalhava, sob o sol de 40 graus. “Eu pedia colo para meu irmão mais velho Felipe”, recorda. E não aceitava quando o pai lhe oferecia uma balinha de R$ 0,10, “porque eu sabia que faria falta”. 

Há sete meses é pai do Luke – em homenagem ao personagem Luke Skywalker da saga Star Wars – e diz que assiste junto com o filho aos programas da Galinha Pintadinha e a Fazendinha do Mundo Bita. 

“É gostoso ver a valorização de marcas brasileiras. Temos artistas e criadores muito bons e importantes aqui”, afirma Marici Ferreira, presidente da Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas e Personagens (Abral). 

Especialmente para a idade pré-escolar, os criadores brasileiros se destacam. Para os criadores do Mundo Bita, a ligação com esse público mirim veio naturalmente. 

“Não é a gente que escolhe o personagem, é a criança. É muito difícil prever qual vai se tornar sucesso”, observa Marici Ferreira, da Abral. O caso da Galinha Pintadinha comprova sua tese. 

Seus criadores, Juliano Prado e Marcos Luporini, ofereceram o desenho para dezenas de produtoras que lhes disseram não. Numa das vezes, Juliano esqueceu o filme de apresentação no seu canal de YouTube. Seis meses depois quando foi abrir seu computador, a Galinha já tinha 500 mil seguidores. 

“Acho que pode dar certo”, disse, na época, para seu parceiro e amigo, Marcos, que estudou música na USP e era seu companheiro em bandas. Os dois começaram então a alimentar o canal do YouTube, que cresceu exponencialmente até os 35 bilhões de visualizações atuais, 3 milhões de DVDs vendidos e centenas de produtos licenciados. 

A Galinha caipira já cacareja em sete línguas diferentes. Em inglês, é traduzida para Lotty Dotty. Em japonês, ficou Roty Doty. Na China, Lanzi Goo Goo. Em francês é Pollet Petit Pois, o que cria confusão nas buscas da internet com a refeição, frango com ervilha, segundo Prado. Para ele, a tradução alemã desperta dúvidas: “a língua não combina com as rimas”. 

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/06/18/personagens-brasileiros-ganham-audiencia.ghtml

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